sexta-feira, 20 de novembro de 2009

É PRECISO APOSTAR!

[ O QUE PENSO SOBRE COTAS RACIAIS... ]

[ Aproveitando o dia de hoje, aniversário da morte do líder negro brasileiro, Zumbi dos Palmares (20 de novembro de 1695), quando se comemora o “Dia da Consciência Negra”, vou postar um texto sobre as polêmicas “cotas raciais”, escrito em meados de 2006 e enviado em 04/02/2007 para uma revista de educação editada no sul do país, Pátio: Revista Pedagógica – fui notificada, no dia seguinte ao envio, 05/02/07, que o texto tinha sido “recebido e encaminhado para apreciação da comissão editorial da Pátio”; até hoje, porém, aguardo a resposta... ;) ]




É PRECISO APOSTAR!

"Sim: mas é preciso apostar. Não é coisa que dependa da vontade, já estamos metidos nisso. Qual partido escolhereis então?" (Blaise Pascal - matemático, pensador e polemista do séc.XVII).


Imaculada Conceição

Não sou especialista em "cotas raciais", mas, como cidadã e educadora é meu dever (e de todos) refletir a respeito. Conheço boa parte dos argumentos que circulam por aí. Embora ambos, tanto os contra quanto os a favor, sejam bastante fortes, convencer alguém que pensa de um modo passar a pensar de outro parece difícil... Só que eu nem sempre pensei como eu penso agora. Não que eu chegasse a ser "contra as cotas". Mas, confesso, achava um exagero: "cotas raciais"! Por que não apenas cotas "sócio-econômicas" (para os menos favorecidos e oriundos das escolas públicas)? Os argumentos contra pareciam me convencer... Até que um "espanto", como se diz filosoficamente, me fez mudar de opinião! E foi exatamente um “discurso contra-cotas” que me abriu os olhos para o exagero. Não da política de cotas raciais, como eu pensava, mas da aversão à política de cotas raciais! É apenas uma proposta temporária. Uma tentativa. Uma aposta numa possibilidade de mudança para melhor (o que não invalida a urgência de profundas reformas na educação em geral - sobretudo no sistema público de ensino básico -, de uma melhoria na qualidade de vida dos cidadãos, na justa e equilibrada redistribuição sócio-econômica etc.). E não algo "contra a Constituição", que vai tirar "direitos dos cidadãos" (isonomia na ordem jurídico-constitucional), lançar o "ódio racial numa sociedade não-racista", "acirrar conflitos raciais nas universidades", ocasionar uma "queda na qualidade do ensino superior", possibilitar o ingresso, "sem mérito" algum, de alunos (e professores) nas faculdades, formar "profissionais desqualificados" etc. etc. etc. etc. Em um momento, esse absurdo me tocou, e me tocou muito profundamente...


É difícil entender boa parte dos argumentos que são usados para derrubar a política de cotas raciais. Noutro dia, p.ex., num jornal de grande circulação (cuja referência infelizmente perdi), li o seguinte comentário: "é possível fazer inclusão social com mérito". A fala vinha de uma pessoa influente ligada a uma grande universidade e cuja proposta era introduzir novas estratégias de ingresso que, favorecendo a inclusão dos discriminados socialmente, evitasse, porém, a política de cotas (sobretudo as raciais). Mas de onde se tirou que a política de cotas insere pessoas "sem mérito"? E o esforço de anos desse cidadão? E o empenho no concurso? O cotista não vai ter de "ralar" como qualquer um de seus colegas para conseguir a vaga? Pois, no mínimo, terá de obter a melhor colocação entre centenas, milhares de outros cotistas (afinal, de quantos por cento é a população negra/parda/indígena no Brasil? Ou de oriundos do ensino público?)! Quem afirma que "é possível fazer inclusão social com mérito" está querendo dizer que quando se reserva um número de vagas (cotas) essas serão preenchidas provavelmente por pessoas "sem mérito algum" e que apenas estão ("espertamente") se aproveitando do fato de se incluírem na especificidade da categoria da cota - no caso das cotas raciais, o "simples fato" de ter a pele de uma determinada cor e/ou assim se declarar???

Outro estranho argumento. Apela-se para os "direitos iguais para todos": está na Lei! Mas não vejo em que a política de cotas fere a Lei. Pelo contrário, é pela igualdade de direitos que devemos ser a favor das cotas. Afinal, toda pessoa humana tem direitos iguais de participar da vida cidadã. E se há algo que vem impedindo um determinado segmento social de participar plenamente, é dever de todos buscar uma solução. E com urgência! É o caso das cotas raciais e/ou das cotas para alunos pobres e/ou das cotas para alunos oriundos da rede pública de ensino, visto uma solução definitiva (ensino público de qualidade, a hipotética eliminação dos preconceitos raciais, uma real melhoria na qualidade de vida dos cidadãos) ser uma política muito demorada e incerta... Assim, aplicando mal o entendimento dos "direitos iguais", há os que alegam que determinados grupos de pessoas - i.e., os não-cotistas - acabam sendo prejudicados (de um modo geral, são exatamente os não-cotistas que assim argumentam), enquanto outros - os cotistas - terão "privilégios", sendo, portanto, assim mais “favorecidos”. Mas quem afirma que as cotas retiram a igualdade de direitos (isonomia) não está refletindo bem o assunto. Pois se apenas um time consegue entrar no estádio e o outro fica barrado (por uma infinidade de motivos: históricos, sociais, étnico-raciais, políticos etc.) do lado de fora: onde está jogo democrático? Não haverá jogo, mas, ainda assim, haverá "vencedores"! O time que teve acesso ao estádio ganhará o jogo, enquanto o outro (pela ausência) perderá de WO. Onde a igualdade de direitos se apenas um time consegue comparecer? Onde o jogo democrático? É preciso a participação de todos para um verdadeiro e justo jogo. As cotas não são para facilitar o jogo, elas são para dar possibilidade ao jogo!

Há ainda aqueles que argumentam dizendo que a qualidade do ensino vai cair (só por causa da inclusão de cotas???). Como se os alunos que entrassem graças às cotas, ainda que oriundos de uma formação educacional com falhas e carências, não fossem "correr atrás do prejuízo" e se esforçarem para alcançar o nível de excelência exigido para sua formação. Quem não se esforçar, se dedicar aos estudos e à preparação necessária para sua formação universitária, não importa se é cotista ou não, se teve uma precária ou excelente educação anterior, se sua formação foi elitista ou veio da rede pública de ensino , se é oriundo de um segmento mais carente ou favorecido socialmente, corre o risco de não conseguir se formar (ou, ao menos, de se tornar um bom profissional). Além do mais, a qualidade do ensino em geral (seja público ou particular, "elitista" ou "popular") já vem caindo por uma série de motivos que não tem nada a ver com "cotas". Professores sabem muito bem que é grande o número de jovens, mesmo os de origem social mais abastada, com uma série de dificuldades de leitura, escrita, interpretação de texto, capacidade de julgar e pensar, de expressar-se com coerência e lógica etc. (sem contar o comportamental: desorientação quanto aos valores éticos, responsabilidade, respeito, cidadania...). É necessário repensar a educação e buscar caminhos; mas daí a responsabilizar a política de cotas por uma queda futura na qualidade de ensino...

Há outro argumento que só vim a conhecer muito recentemente. O que se baseia em estudos sobre a inexistência de raças para "provar" que não há racismo! Também sempre achei o conceito de raça (sobretudo "pura"!) a coisa mais louca já inventada pelos humanos - que não fazem outra coisa do que vir se misturando desde o início dos tempos, desde as origens das civilizações. Mas se é loucura e tolice instituir a existência de raças entre os humanos, não deixa de ser verdade (real) a existência de racistas (aqueles que acreditam que certas "combinações" deram "mais certo" do que outras!)! Portanto, fundar em razões a inexistência do racismo é não querer ver a realidade de frente, cara a cara. Isso não seria agir como os racistas? Afinal, que são os racistas senão pessoas que se baseiam em idéias completamente irracionais, embora (loucura total!) "fundadas" em razão?

Dois outros argumentos (que quase me pegam!) são de que a política de cotas pode causar mais preconceitos do que vantagens (p.ex., o risco de no futuro o profissional ser "desqualificado" por sua formação - tipo assim, "você só é engenheiro por causa das 'cotas'!") e que mais vale a inclusão por cotas sociais, favorecendo desse modo os mais pobres que não tiveram chances de uma melhor preparação devido à decadência do sistema público de ensino do que apelar para as cotas raciais (até porque, e isso faz parte do argumento, a quase totalidade dos alunos de baixa renda e oriundos do ensino público é de negros/pardos). Eu disse quase que me pegam... No início dos debates, quando me perguntavam se eu era a favor ou contra as cotas raciais, levando em conta os argumentos acima, achava de fato um exagero reservar vagas para pessoas de determinadas etnias, bastavam cotas para os oriundos das escolas públicas (que, "lóóóógico", já incluiria um grande número de negros/pardos/índios!)! De fato, quem pode ter certeza se a política de cotas étnico-raciais será eficaz mesmo ou não? E se deflagrar ainda mais preconceitos?
Mas quando eu soube que o Movimento Negro (em sua quase totalidade - e ainda bem que há divergências de opiniões, pois, como disse Nelson Rodrigues, "a unanimidade é burra": a multiplicidade possibilita a inteligência das decisões -) apoiava a política de cotas, eu, que sou de aparência branca ( - independente se tenho ou não uma ascendência negra - não é essa a questão! - Muitos brancos, que se posicionam contra as cotas, argumentam terem feito essa escolha não por "preconceito", visto serem descendentes de negros. Ora, e desde quando alguém coloca a foto de seus pais, avós, bisavós no currículo? Ou vão a uma entrevista de emprego levando sua família ou o mapa de sua árvore genealógica? Você vai com sua cara, sua pele, sua cor... E isso faz toda a diferença! - ); pois bem, eu que sou de aparência branca me vi no dever de apoiar. Afinal se os mais interessados na questão são a favor, o que posso eu dizer? Se fosse algo que os desabonassem, que os prejudicassem, que lhes causassem mais preconceitos ainda, eles não apoiariam (só por "esperteza" para entrarem fácil numa faculdade? Fala sério!). Assim como qualquer outra modalidade de cotas ou de direitos a grupos específicos: idosos, homossexuais, mulheres, portadores de deficiências ou cuidados especiais etc. apoiariam algo que os prejudicassem? Por exemplo, o direito à licença maternidade, mesmo que alguém, com fortes argumentos contra, chegasse perto de conseguir aboli-lo, não gritariam as mulheres a favor da lei? E os homens, mesmo que quase convencidos pelos eficazes argumentos deste desnaturado, vendo as mulheres se posicionarem pela manutenção de seus direitos, não escolheriam ficar do lado de suas esposas, filhas, mães, tias, primas, cunhadas, irmãs, amigas, colegas de trabalho...? As mulheres lutaram muito no passado para conquistar seus direitos, como ao sufrágio universal, que hoje nenhuma democracia pensa abolir.
Certo, as "ações afirmativas" (como as cotas), ao contrário, não são para perdurarem, são para, de modo imediato (e provisório), abrir novas oportunidades às pessoas, criando assim uma esfera pública mais plural e fraterna (isso sim é para perdurar!). Além do mais, a questão da política de cotas raciais foi antes muito estudada e discutida (e continua sendo) para que se chegasse à conclusão de sua importância no atual momento de nossa história; e o projeto de lei (nº 73/99) que tramita no Congresso Nacional não se restringe à regulamentação de cotas para negros (que, parece, é o maior alvo das objeções!), mas visa também aos oriundos de escolas públicas, abrangendo, portanto, questões étnicas, históricas e sociais.

Eficácia nas políticas públicas? Sim. Melhorias no ensino, sobretudo o fundamental? Sim. Mas essas e outras políticas, mesmo que eficazmente implantadas AGORA, quanto tempo precisarão para começar a dar frutos? Décadas? No mínimo.... No Brasil, essa esperança tem pelo menos séculos! Sim. A situação não é de fato nada simples. Tem o peso de toda uma história: a própria polêmica que a questão vem levantando já mostra isso! Mas se não aproveitarmos essa medida que agora se apresenta, o peso só irá aumentar, aumentar, aumentar... até arrebentar? Não é o que queremos! Não é um fosso de injustiças e desigualdades aumentando a cada dia o que queremos para nossas crianças e nossos jovens. Se dará ou não certo? Só apostando!

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