domingo, 8 de fevereiro de 2015

A CRÍTICA DE HUME AO PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO DA CAUSALIDADE


A CRÍTICA DE HUME AO PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO DA CAUSALIDADE

Imaculada Conceição Manhães Marins



A crítica de Hume ao problema epistemológico da causalidadeCom base em que argumentos o filósofo Hume sustenta que, por hábito, tendemos a transformar sucessão cronológica em conexão necessária?

Ao propor os domínios do entendimento humano, o filósofo David Hume tem por pretensão desestabilizar as concepções metafísicas de conhecimento.  Para o pensamento metafísico, a verdade se dá por adequação entre as Ideias do intelecto e a realidade externa.  As ideias racionais são a priori e contém verdades iluminadas pela luz divina (como, por exemplo, em Descartes). 
Para Hume, as ideias não estão a priori, elas derivam das impressões (sensíveis), sejam estas ideias simples (a ideia de um cavalo, por exemplo, ou de uma mulher) sejam estas ideias complexas (a ideia do Pégaso”, que é a junção de duas ideias simples: cavalo mais ser-alado, ou a ideia de Sereia, mulher mais peixe).



Todo conhecimento deriva necessariamente das percepções sensíveis, que se dividem em percepções fortes - impressões diretas (por exemplo, se coloco a mão no fogo, logo se imprime em mim a sensação do calor do fogo) ou percepções fracas - as Ideias (por exemplo, eu guardo a ideia daquela impressão do calor do fogo, mas ela não é mais uma impressão direta e, ao recordá-la, posso ter de volta tal sensação, mas não equivale ao momento em que essa esteve impressa em mim diretamente).
Se as ideias não são tidas mais como a priori, e agora encontram-se totalmente subordinadas às impressões sensíveis, que conseqüência tem isso para o conhecimento?
As consequências são que Hume será o responsável por derrubar todas as concepções metafísicas, tais como a de existência independente (realidade substancializada), a de identidade, a de causalidade etc.
O primeiro elemento essencial para o conhecimento da “realidade de fato” é, como mencionamos, as percepções (impressões e idéias), o segundo elemento é como trabalhamos (juntamos) essas percepções em nosso entendimento.
A maneira como conectamos impressões e ideias é fruto do hábito e é através dele que concebemos os nexos causais, as identidades das coisas e acreditamos em um mundo exterior.


O hábito é para nós uma espécie de "instinto" e é ele que liga as percepções, de modo a inferirmos de um acontecimento “A” uma conseqüência “B”, desde que esta tenha sido assim experimentada por nós sucessivas vezes.  A prova de que o “nexo causal” se encontra no hábito e não em intrincados processos racionais cognitivos é que tanto as crianças, quanto os “rudes”, quanto os animais dele se apercebem. Um cão não se utiliza de nenhum raciocínio lógico para “inferir” as causas de um acontecimento. Se eu regularmente o machuco com uma barra de ferro, basta eu me apresentar com ela em punho frente a ele para ele temer ("inferir") as conseqüências. “Não há no mundo – diz Hume – isso que se chama acaso”; o que chamamos acaso deve-se à “nossa ignorância da verdadeira causa de uma ocorrência” oculta para nós.[1]
A causalidade não está nem na razão, nem na realidade exterior. O que percebemos daquilo que chamamos realidade exterior é que um fato sempre se sucede a outro, de modo que depois de repetidas sucessões similares, por hábito, acreditamos na necessidade desta causalidade. Mas não podemos falar de certeza, senão de probabilidades.[2] 



A ciência trabalha com probabilidades maiores ou menores. O que chamamos "leis da natureza", por exemplo, não são necessárias, mas fruto de uma probabilidade altamente favorável, com uma margem de erro (causalidade) ínfima.  Por exemplo, ao levantar o lápis a um metro do chão e depois soltá-lo espero (sei) que, pela “lei da gravidade” (lei que não só experimento pessoalmente, como foi instituída por cientistas, homens de pouca probabilidade de estarem mentindo), o lápis cairá.  Mas não há “nenhuma contradição” para o pensamento que ele não caia e flutue no ar. É pelo hábito que sei que a infinita probabilidade é de que ele caia. 
Acontece é que, nada impede que as ditas “leis da natureza” (como a da gravidade terrestre) sejam tal como um dado de um trilhão de faces, onde somente uma foi marcada pelo nº zero e todas as outras pelo nº 1.  Se dissermos que as faces de nº1 correspondem a tal “lei” e a única face de nº zero corresponde a um ermo acaso, onde a lei falharia aqui na Terra, então, no caso do exemplo acima, o lápis se manteria suspenso no ar. E se durante toda a história dos seres humanos sobre a Terra, caiu sempre um dos lados nº 1 (uma vez que a probabilidade é um trilhão de vezes maior do que caia a única face nº zero)? Então os humanos instituíram esta lei como necessária.


Para Hume, as probabilidades de que algum humano tenha presenciado de fato um milagre (ou o que aqui chamamos a queda da única face de n.º zero) é praticamente nula; visto que, por experiência, também já ajuizamos os homens como tendendo para o “fantástico e para o maravilhoso”.[3] De tal modo que se algum homem diz ter presenciado tal “milagre” (a queda da face n.º zero) é mais fácil acreditarmos que ele mente, nos engana ou auto se engana. Como há de fato remédios que tornam possível a cura de algumas enfermidades, podemos concluir, por exemplo, diante de um charlatão (que saiba nos convencer e nos ludibriar de sua sinceridade) que ele tem a cura para nossos males.

Não se encontra em toda História nenhum milagre atestado por um número suficiente de homens de tão indisputado bom senso, educação e cultura que nos garantissem contra a hipótese de qualquer ilusão deles próprios; de tão reconhecida integridade que os colocasse acima de qualquer suspeita da intenção de iludir os outros; e de tal crédito e reputação aos olhos da humanidade que representasse grande perda para eles se apanhados numa mentira; e, ao mesmo tempo, atestando fatos ocorridos de maneira tão pública e numa parte tão conhecida do mundo que o desmascaramento se tornasse inevitável: circunstâncias essas que são todas indispensáveis para nos dar plena confiança no testemunho dos homens. [4]

 As probabilidades de que algum humano tenha presenciado a “queda” da face nº zero é praticamente nula e, ainda, por experiência, também já ajuizamos os homens como tendendo para o “fantástico e para o maravilhoso”, de tal modo que se algum  homem diz ter presenciado este “milagre” (a queda da face nº zero) é mais fácil acreditarmos que ele mente, nos engana ou auto se engana. 
Por “milagre” Hume chama a quebra do curso regular da natureza, tal como o exemplo que demos do lápis permanecer flutuando no ar, apesar das leis da gravidade terrestre.
David Hume define “milagre” como aquilo que ultrapassa (ou viola) as leis naturais[5] - leis estas determinadas pelo hábito, não por necessidade: “Que são nossos princípios naturais, senão princípios de hábito?” - como diria Blaise Pascal (Pensamentos, Br. fr.92).

É mais do que provável que todos os homens deverão morrer; que o chumbo, por si mesmo, não pode ficar suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e é apagado pela água  - a não ser porque sabemos que esses fatos são consentâneos com as leis da natureza e que é preciso uma violação dessas leis ou, em outras palavras, um milagre para impedi-lo. / Nenhuma coisa que tenha ocorrido alguma vez no curso ordinário da natureza é jamais considerada como um milagre. Não é milagre que um homem, que parece gozar de boa saúde, morra repentinamente: pois essa espécie de morte, conquanto mais rara que qualquer outra, tem sido observada muitas vezes. Mas seria um milagre que um morto voltasse à vida, porque isso jamais foi observado em qualquer época ou país. [6]

Para Hume, não há nenhuma contradição pensarmos em sua probabilidade, o que ele objeta é que tenha de fato ocorrido, em toda história do homem, isto que chamamos a “queda da única face nº zero do dado de um trilhão de faces”.  Pois, embora os testemunhos humanos sejam de grande relevância, quanto aos ditos “milagres”, eles não tem valor algum.  Hume os derruba um por um - visto não ter encontrado em nenhum deles (nos testemunhos), a isenção científica necessária. É de extrema importância, para nós, humanos, levarmos em conta o que os homens dizem, pesquisam, conhecem, uma vez que isto reduz a necessidade de termos experiências diretas, pois usando a experiência dos outros humanos (os testemunhos respeitáveis de cientistas, por exemplo) podemos conhecer tais como se eles fossem nossos - ninguém precisa percorrer todos os caminhos da experiência científica cada vez que for criar algo de novo. Partimos das experiências precedentes para daí prosseguirmos.


É verdade que se Hume, desconfiando da veracidade dos testemunhos, descarta a possibilidade de já terem ocorrido, sob uma perspectiva científica, “milagres”, não os descarta sob a perspectiva da fé, que ele, tal como Blaise Pascal, reconhece não ser do domínio (ou da ordem) da razão.



Ainda mais me agrada o método de raciocínio aqui exposto quando penso que talvez sirva para confundir esses inimigos disfarçados da Religião Cristã que se propõem a defendê-la pelos princípios da razão humana. Nossa santíssima religião está fundada na e não na razão: e é um meio seguro de traí-la esse de submetê-la a um prova a que ela não pode de nenhum modo fazer frente. (...) O que dissemos dos milagres pode ser aplicado, sem qualquer alteração, às profecias; e, com efeito, todas as profecias são verdadeiros milagres, e só a esse título podem ser admitidos como provas de qualquer revelação. Se prever acontecimentos futuros não fosse superior à capacidade da natureza humana, seria absurdo alegar qualquer profecia como prova de uma missão divina ou de uma autoridade, conferida pelo céu. E assim, numa visão de conjunto, podemos concluir que a Religião Cristã não só foi inicialmente acompanhada de milagres, como até hoje não e possível que uma pessoa razoável lhe dê crédito sem milagre. A simples razão é insuficiente para nos convencer de sua veracidade, e todo aquele que é movido pela a aceitá-la tem consciência de uma continuação do milagre na sua pessoa, subvertendo todos os princípios de seu entendimento e dando-lhe a determinação de crer no que é mais contrário ao costume e à experiência.[7]

Voltando à questão do combate da ideia metafísica de “nexo causal”, Hume afirma que não podemos conhecer este nexo como existente na realidade, pois que ele é fruto de um processo derivado do hábito que temos em juntar um fato a outro.  Dado “A” que se sucede a “B”, depois de repetidas vezes, acreditamos que “A” possui um nexo causal com “B”.  Ou melhor, inferimos que as probabilidades que tendo sido dado “A” logo se sucederá “B” são praticamente certas. 


"Causa" é para Hume apenas a sucessão repetida de um determinado fato a outro. É pelas leis associativas, que nosso hábito engendra, que nós tiramos a ideia de causalidade.  As leis associativas são as relações de semelhança, de contiguidade, de causalidade. Por exemplo: de semelhança: a relação entre a imagem de um retrato e da pessoa que é “motivo”; de contiguidade: a relação da “casa de botão” com o botão da roupa; de causalidade: a relação do fogo com a dor da queimadura. 
A imaginação e a memória são dois elementos que ajudam nas junções das impressões e ideias, de tal modo que as concepções não só de causalidade, como também de existência de um mundo exterior e de identidade são formadas por elas.
É por instinto (hábito) que acreditamos em um mundo exterior (substancial) e não pela sensação ou pela razão. Não é pela sensação, uma vez que as impressões não permanecem o tempo todo impressa em nós. Porém, mesmo depois de cessada a impressão não acreditamos que uma determinada realidade deixou de existir. Não é pela razão, porque até as crianças (que ainda estão em processo de formação), por exemplo, acreditam em uma realidade exterior.


O mesmo acontece com a identidade, temos impressões fragmentadas de uma realidade, mas a imaginação e a memória juntam estes fragmentos de impressão num todo, numa identidade.
Quanto à ideia de nexo causal, se dá o mesmo - não só não existe este nexo na realidade das coisas (como exterioridade independente do sujeito que conhece), como não depende da razão.  Um homem (um ser racional) que aparecesse neste mundo, de repente, sem nunca ter tido nenhuma experiência sensível em relação a ele, não poderia inferir, penas com o uso de seus raciocínios lógicos, que o fogo queima, por exemplo. Ele precisaria vivenciar repetidas experiências similares para “conhecer” os nexos causais.  Somente a experiência repetida engendra a noção de causalidade.




     NOTAS



[1] HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano - An Enquiry Human Understanding - Col. “Os Pensadores”, SP, 1973: p.151.

[2]  HUME, David. p.175.

[3] Sobre o pouco de confiança que devemos aos testemunhos dos homens pela “forte propensão da humanidade pelo extraordinário e o maravilhoso”; ou “a inclinação dos homens pelo maravilhoso”, ver:  HUME, David: p.177-178.

[4] HUME, David. p.177.

[5] Segundo Hume: “Um milagre é uma violação das leis da natureza” (HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano: p.176. Ver ainda, por exemplo: pp.145-146; pp.150-151).

[6] HUME, David: p.176.

[7] HUME, David: p.175-176.


Imaculada Conceição Manhães Marins

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

A COMUNIDADE NA INTERSUBJETIVIDADE - A “ESTÉTICA” DE KANT (Da Comunicabilidade Universal Subjetiva do Juízo Estético)




[Escrevi este texto há muitos anos... e o divulguei em alguma publicação acadêmica da qual não me recordo mais - e não vou agora procurar... (Re)publico-o aqui... Embora ele tenha essa cara de texto acadêmico, muito prazer me causou na época escrevê-lo... Sei que é uma publicação grande para um Blog, mas quem tiver paciência e se interessar pelo tema... taí... ]

A “ESTÉTICA” DE KANT
A COMUNIDADE NA INTERSUBJETIVIDADE
(Da Comunicabilidade Universal Subjetiva do Juízo Estético)

Imaculada Conceição Manhães Marins

RESUMO: Só o caráter de universalidade (que deve ser a priori) é capaz de dimensionar a comunicabilidade entre todos os humanos (Humanidade). Graças à universalidade dos conceitos é possível o conhecimento científico (e a comunicação deste saber). Mas como fundamentar a comunicabilidade universal do juízo estético de gosto, se esta não se encontra sob a legislação objetiva (universal) dos conceitos? E mais, como não perder o caráter de singularidade (subjetividade), que caracteriza toda experiência estética, e ao mesmo tempo requerer universalidade do juízo estético? É em sua terceira Crítica que Kant refletirá sobre tais questões, encontrando uma possibilidade de resposta na capacidade humana de se socializar e comunicar-se.
PALAVRAS-CHAVES: Kant, experiência estética, juízo reflexivo, comunicabilidade, humanidade.

Na Crítica da Razão Pura (A, 21/ B, 35), Kant designa por estética “uma ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori”, e, em nota de rodapé, ele faz questão de distinguir seu uso (transcendental) deste termo pelo uso (que virá a se tornar popular) entre alguns de seus contemporâneos, sobretudo Baumgarten: “São os alemães os únicos que atualmente se servem da palavra estética para designar o que os outros denominam crítica do gosto. Esta denominação tem por fundamento uma esperança malograda do excelente analista Baumgarten, que tentou submeter a princípios racionais o julgamento crítico do belo, elevando as suas regras à dignidade de uma ciência. Mas esse esforço foi vão.” “Foi vão”, pois é impossível, no entender de Kant, uma ciência do belo ou do gosto (CJ §60)[i], visto que seu objeto não está sujeito às regras do juízo determinante (dos conceitos), mas às regras (indeterminadas) do juízo reflexivo (estético) (CJ Intr.IV).
Se não podemos situar na dimensão do conhecer (lógico-conceitual) a crítica do gosto, necessitamos, no entanto, de algum critério de universalidade; caso contrário, jamais poderíamos ter a pretensão de compartilhar nosso sentimento estético de gosto com outra(s) pessoa(s), ou de discutirmos sobre. Só o caráter de universalidade (que deve ser a priori) é capaz de dimensionar a comunicabilidade entre todos os humanos (Humanidade). O caráter de universalidade dos conceitos nos possibilita o conhecimento científico (e a comunicação deste saber). Mas, como fundamentar a comunicabilidade universal do juízo estético de gosto[ii], se esta não se encontra sob a legislação objetiva dos conceitos? E mais, como não perder o caráter de singularidade (subjetividade), que caracteriza toda experiência estética, e ao mesmo tempo requerer universalidade do juízo estético?
Todas as faculdades da alma, ou capacidades do espírito humano, nos diz Kant, podem ser reduzidas a três: faculdade de conhecimento (objetivo); sentimento de prazer e desprazer e faculdade de apetição (CJ Intr. III). O propósito do projeto crítico pode, então, ser definido como a busca pelas possibilidades gerais da razão (ou “faculdades da alma”) no homem: i.e., como a razão intelectiva ou especulativa, em acordo com os dados (intuições) sensíveis, determina nossa realidade possível, os “fenômenos”, (re)processando-os em conhecimentos lógico-racionais (a faculdade do Entendimento); como a razão destina o homem às ações morais (Razão Prática); e como funciona nos sentimentos de prazer e desprazer e no pensar reflexivo (Faculdade do Juízo). Para tanto, Kant, na Crítica da Razão Pura, analisa a distinção entre razão pura e razão especulativa, na Crítica da Razão Prática, analisa a razão considerada como princípio de nossas ações morais e na Crítica da Faculdade do Juízo, analisa a razão como fonte dos nossos juízos estéticos e teleológicos.
Podemos dizer que o grande achado de Kant na primeira Crítica é a formulação da distinção entre razão (pura) e entendimento (ou razão especulativa). O entendimento é uma faculdade da Razão em geral e é a que nos possibilita o conhecimento objetivo (que fundamenta objetivamente o real e, conseqüentemente, o saber científico). A razão não se encontra relacionada diretamente a um objeto do conhecimento (ou a um objeto da realidade possível: fenômenos); é somente por intermédio do entendimento que ela opera no conhecer: organizando, conectando, ordenando, totalizando, unificando etc. Trata-se de investigar quais as delimitações que devemos impor à razão para não corrermos o risco de cairmos em paralogismos e outros sofismas racionais, acreditando ser da dimensão da realidade possível ao homem o que não passa de quimeras ou ilusões racionais (i.e., de uma aparência dialética de um verdadeiro conhecimento, onde se toma os juízos sobre as idéias como se fossem juízos sobre os objetos de uma experiência possível). À razão (pura) caberá sobretudo uma função reguladora para as ações morais e o pensar reflexivo. Portanto, assim, outro grande achado de sua filosofia é uma mudança de perspectiva: a valorização do conhecimento sensível (finito, humano) em relação a toda tradição filosófica ocidental, onde a sensibilidade encontrava-se inferiorizada e subordinada ao inteligível. Afirmava-se o sensível sempre a partir do inteligível (Deus: Logos, Infinito, Absoluto), sendo o primeiro uma imperfeição (um ser-menor) em relação ao segundo (O Ser). Kant, ao contrário, parte da afirmação da condição limitada e sensível, que é necessariamente a consciência humana, para só depois chegar a Deus (uma idéia necessária da razão). O conhecimento sensível (humano) não é inferior ao de Deus, é o único conhecimento possível a nós. O sensível é a marca distintiva de nossa condição humana, e o conhecimento finito é a única dimensão possível de conhecimento para nós. Não é mais em nome da figura divina de um Absoluto inteligível, de um entendimento Infinito que se poderá relativizar o conhecimento sensível-racional e defini-lo como um ser-menor, mas, ao contrário, é em nome da finitude insuperável de nossas existências que a figura de Deus, do Absoluto, do Infinito será relativizada à condição de uma simples idéia da razão (pensável, mas não conhecível).
Na terceira Crítica, logo após a introdução, o filósofo expõe em um quadro sistemático a organização do conjunto de nossas faculdades.[iii] Este quadro apresenta como relevante para as três Críticas a procura pelos a priori das faculdades racionais de conhecimento superior. Da faculdade cognitiva superior, onde o Entendimento (e suas categorias) dá a priori as leis do conhecimento (“conformidade a leis”). Da faculdade apetitiva superior, onde a Razão (prática) dá a priori sua lei: o “dever-ser” moral (o “Fim último” a que a razão deve se destinar). E do sentimento de prazer e desprazer, onde o Juízoa priori os seus princípios (“conformidade a fins”). Por a priori Kant entende aquilo que deve ter o caráter de necessidade e universalidade, i.e., uma lei da razão que deve ser válida para todo ser racional.
O objetivo principal da primeira parte da Crítica da Faculdade do Juízo, intitulada “Crítica da Faculdade de Juízo Estética” (onde é analisada a faculdade racional capaz de ajuizar esteticamente, i.e., capaz de realizar um julgamento de gosto que postule algo belo), gira em torno de como os juízos estéticos (juízos que dizem respeito a experiências singulares) podem ter validade a priori, sendo assim universalmente válidos e, por conseguinte, universalmente comunicáveis. O caráter de “universalidade” e “necessidade” são tomados, em Kant, não no sentido ontológico (da tradição metafísica ocidental). O ontológico adquire em sua filosofia um valor transcendental - e não meramente transcendente, como para a concepção metafísica anterior ao projeto crítico -, quer dizer, é algo que consta dos a priori da razão pura e estabelece as condições universais de “existência” (CJ Intr.V). Por exemplo, é transcendental o princípio de causalidade, como conceito puro do entendimento, em relação à realidade fenomênica (a realidade na perspectiva do sujeito humano), uma vez que, “as leis universais do entendimento são ao mesmo tempo as leis da natureza” tomada enquanto o conjunto dos fenômenos (CJ Intr.VI); e é transcendente (i.e., metafísico) se uma causa for dada como “exterior” ao “fenômeno” (ou à representação) -  a “causa” da “realidade ‘em si’ ”, ambas, no entanto, fora do âmbito da experiência possível (CJ Intr. V). O transcendental traduz aquilo que permeia as possibilidades da experiência. O transcendente terá em Kant um sentido apenas regulador: são as idéias da razão (“úteis” tanto à ação moral quanto ao pensar reflexivo). [iv]
Kant não faz afirmações sobre a natureza do “existente-em-si” ou da “realidade ‘em si’”, i.e.: a realidade independente do sujeito que conhece, independente da perspectiva possível ao homem. Todo real logicizável (i.e., passível de ser conhecido pelo entendimento) é para Kant um real-construído (fenômenos) pela relação de nossa consciência racional (o entendimento e suas categorias) com os dados sensíveis. As categorias não são gêneros das coisas existentes, mas “conceitos puros” do entendimento; e correspondem às formas lógicas. Pelas categorias (formas do entendimento) e pelas formas da sensibilidade (espaço/tempo) nossa “realidade” é enFORMAda.  Substancialidade e causalidade, por exemplo, pertencem ao nosso modo de “conhecer”, i.e., ao modo como o homem estrutura, arquiteta sua realidade. Não se pode afirmar nada daquilo que, independente da perspectiva (sensível-racional) humana, “é” ou “está-sendo” (por isso Kant não afirma antinomias no Ser - as antinomias ontológicas da tradição metafísica -, mas antinomias da razão). Pode-se apenas fazer afirmações daquilo que é para a consciência racional do homem em sua relação com o sensível: a realidade-fenomênica - a única realidade acessível à razão cognoscente do homem. O “real” para além da perspectiva sensível-racional humana (i.e., da “experiência possível”) é o que Kant denomina “númeno”, aquilo que pode ser apenas cogitável. Kant assegura, assim (contra os céticos e o idealismo dogmático[v]), a existência de uma realidade externa à consciência do homem, ao mesmo tempo em que afirma que o real que lhe cabe é um real exclusivamente construído por e para ele[vi] Se o mundo fenomênico é a realidade possível à mente cognoscente do homem, o “mundo” numênico significa um X, o grande enigma que escapa às possibilidades de nosso conhecimento e “experiência possível”: afinal o que é a realidade para além da consciência racional do homem?; o que são as “coisas em si” mesmas (no sentido metafísico ontológico - i.e., para além dos fenômenos)?
O que denominamos razão é em si uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. E é essa estrutura (ou “capacidade da alma”), e não os conteúdos (como acredita o racionalismo, com suas idéias inatas), que é universal, a mesma para todos os seres humanos. Essa estrutura não é adquirida através da experiência (como acredita o empirismo), ela é, do ponto de vista da consciência cognoscente, aquela que constrói a realidade (consciente) possível. A estrutura (capacidade) da razão ou do espírito humano (e aí Kant inclui a sensibilidade e suas formas - o espaço/tempo) é anterior (a priori) à experiência, ou seja, não depende dela.  Dizer ser as categorias estruturas vazias - a priori, universal - as mesmas para todos os seres racionais -, isso não significa afirmar que a razão cria (efetivamente, como acreditam os idealistas dogmáticos) os objetos da realidade, mas sim que os faz existir para nós, como fenômenos. Se os empiristas enfatizam a experiência, dizendo ser a partir dos dados fornecidos por esta que a razão se estrutura categorialmente, os racionalistas dogmáticos dizem ser os conteúdos inatos na razão do homem, independentes da experiência. Kant recusa essas concepções tomadas isoladamente e tenta uma conexão entre elas, afirmando que a capacidade racional da mente cognoscente (as formas do entendimento, as categorias, e as formas da sensibilidade) é que é a priori, ainda que vazias de conteúdos (a matéria, fornecida pela experiência, a ser enFORMAda).
Dizer Universalidade e Necessidade são apenas Leis da razão significa que não sendo a universalidade empírica (fundada somente nas sensações particulares e contingentes) nunca rigorosa ou verdadeira a única universalidade verdadeiramente autêntica precisa estar fundada sob as formas a priori do entendimento, i.e., sob aquelas formas que participam na constituição dos objetos enquanto fenômenos. Fenômenos são para Kant, como vimos, os objetos de toda experiência possível à perspectiva (sensível-racional) do homem. A experiência puramente sensível (dos empiristas) só pode dar origem a proposições contingentes, de modo que a razão será a fonte única de proposições universais e absolutamente necessárias - sem que com isso entendamos que a razão é “primeira” e funciona antes da sensibilidade (como na concepção racionlista das “idéias-inatas”); pois razão/entendimento e sensibilidade necessariamente se inter-relacionam no homem: ser necessariamente sensível-racional. “O que Kant chama ‘a sensibilidade’ já é ela mesma uma faculdade permeada de espírito, observa Türcke. Mas, se isto é irrecusável, então vale também o inverso: o espírito é uma faculdade ‘permeada de sensibilidade’, não apenas ‘um algo imperativo’ que sintetiza a todo custo” (TÜRCKE, 1993, p.105).
A “razão-estética” kantiana (Faculdade do Juízo Estética) abre espaço para a singularidade, dentro deste “mundo construído” (pelas categorias do entendimento), porque indica uma “faculdade-intermediária”. O entendimento, por seu caráter lógico, não nos possibilita a radicalidade de experiências singulares, já que enquadra todo o “real” em suas categorias. No entanto, quando algo (contingente) foge às regras lógicas do entendimento, que com suas categorias prescreve à natureza Leis - como causalidade, substancialidade, identidade etc. -, isso não significa que esta contingência não possa ser indicadora de uma “lei”, que porém é (ainda) desconhecida para a mente cognoscente (lógica) do homem (CJ Intr. V). Assim, tudo o que o entendimento (lógico-racional) não pode “admitir”, tudo o que escapa às suas regras e leis [como por ex.: a singularidade irredutível a conceitos, i.e., o inefável -; o imprevisível, i.e., o acaso -; a complexidade do múltiplo ou o confuso, i.e., o caos -, etc.] é, a nosso ver, uma experiência possível no âmbito da faculdade do juízo estética. Pois é contingente que o “real” corresponda ou não aos imperativos da racionalidade lógica. Ou melhor falando: não é um imperativo que a realidade (para o homem) sempre se enquadre nas formas lógicas do entendimento. Daí o motivo pelo qual, diz Kant, “nos regozijamos quando de uma experiência estética”, “no fundo porque nos libertamos de uma necessidade [que os juízos determinantes impõem], como se fosse um acaso favorável às nossas intenções, quando encontramos uma tal unidade sistemática sob simples leis empíricas [contingentes], ainda que tenhamos necessariamente que admitir que uma tal necessidade existe, sem que contudo a possamos descortinar e demonstrar [como poderíamos caso se tratasse de uma experiência logicizável, uma experiência redutível às categorias lógicas do entendimento]” (CJ Intr. V)[vii]. Aqui, partimos do pressuposto de que as “leis da experiência possível em geral” servem tanto para as experiências relacionadas a uma realidade logicizável (categorizada e enformada pelo entendimento), quanto para nossas experiências não-logicizáveis (estéticas) - estas últimas, no entanto, não podem se edificar como um saber científico - , salvaguardando assim as experiências não-logicizáveis de uma inevitável interpretação metafísico-ontológica, a saber, a crença de que podemos, de algum modo, transpor a experiência possível ao homem.
Para nossas experiências singulares (as estudadas na terceira Crítica são: a complacência no belo e o êxtase do sublime - este último, porém, não abordaremos aqui -) Kant irá buscar um a priori, i.e., algo que possa ser dado como um universal. Este universal, não podendo ser objetivo (ligado a conceitos), e nem empírico (fundado nas sensações ou nos objetos dados empiricamente), deve ser subjetivo, porém não “particular”, mas de uma subjetividade universal; que ele encontrará nas condições inerentes ao funcionamento estrutural de nossas faculdades: uma capacidade que Kant pressupõe comum a toda a humanidade - enquanto pertencentes à comunidade de seres racionais.
A faculdade do gosto, como uma faculdade do juízo estética, é aquela que experimenta a complacência no belo. A definição de gosto aqui é de que ele é a própria “faculdade de ajuizamento do belo. O que porém é requerido para denominar um objeto belo tem que a análise dos juízos de gosto descobri-lo” (CJ §1/nota). As expressões gosto e belo possuem na terceira crítica um sentido singular, diverso do sentido habitual (e mesmo pejorativo) que estas adquiriram. Belo não é uma qualidade do objeto ou a sua essência. E nem pode ser tomado como uma idealidade, um modelo, no sentido platônico. Gosto não é algo irredutivelmente particular e pessoal (“psicológico”), que cada um tem o seu e “não se discute, pronto!”, dificultando a comunicabilidade ou a partilha do sentimento estético mediante a diversidade dos indivíduos e dos grupos humanos. Gosto é apenas a faculdade que nos possibilita ajuizar algo belo; i.e., gosto é a capacidade que tem o espírito humano de ajuizar esteticamente; e belo é uma representação daquilo que objetiva esta capacidade de nossas mentes racionais. Belo é, assim, o “objeto” deste ajuizamento, mas somente na medida de sua representação formal, descompromissada de qualquer objetivo (conceitos), e igualmente independente do objeto tomado empiricamente.
Desse modo, não é absolutamente pretensão da estética kantiana estabelecer uma doutrina do gosto, com a indicação de um modelo de “Belo-Ideal”: um “gosto-ideal” imputado a priori pela razão. Pois, embora Kant ao analisar o juízo estético de gosto pretenda dar a este um caráter de universalidade (“gosto é a faculdade de ajuizamento daquilo que torna nosso sentimento universalmente comunicável” - CJ §40), não pretende, contudo, eliminar a singularidade da experiência estética, não pretende tornar o julgamento prescritivo e nem o gosto canônico; visto que, “a universalidade de um juízo de gosto é somente subjetiva (CJ §8). Temos aqui uma antinomia do gosto: como é possível um juízo singular aspirar a uma necessária universalidade, permanecendo esta universalidade, ao mesmo tempo, apenas subjetiva? [antinomia que Kant nos §§55-57 da Crítica da Faculdade do Juízo buscará resolvê-la - voltaremos a este ponto].
Uma das primeiras condições que Kant impõe ao juízo estético, para diferenciá-lo de um mero “gosto pessoal” (que ele chama “psicológico”, por não poder exigir universalidade), ou ainda, para diferenciá-lo de um juízo de conhecimento (lógico), é a de que “a complacência que o determina deve ser isenta de todo o interesse (CJ §2). O gosto estético “é inteiramente livre com respeito à complacência que ele (o sujeito) dedica ao objeto; assim ele não pode descobrir nenhuma condição privada como fundamento da complacência à qual unicamente seu sujeito se afeiçoasse, e por isso tem que considerá-lo como fundado naquilo que ele também pode pressupor em todo o outro” (CJ §6 - grifo nosso). Por complacência interessada, Kant entende o que possui um fim ou um objetivo determinado a que se destina. O belo é desinteressado, equivale a dizer: o processo de ajuizamento que determina algo belo possui uma “finalidade sem fim”. Assim: “nem uma amenidade que acompanha a representação nem a representação da perfeição do objeto e o conceito de bom” podem conter o fundamento de determinação do belo.  “Logo, nenhuma outra coisa senão a conformidade a fins subjetiva, na representação de um objeto sem qualquer fim (objetivo -conformidade a conceitos, ou subjetivo - ‘psicológico’), conseqüentemente a simples forma da conformidade a fins na representação” é que vale de fundamento em um juízo de gosto (CJ §11).
O belo supõe uma finalidade sem a idéia de fim, i.e., o sentimento de prazer no belo é a complacência ao se apreciar a simples forma, sem associá-la a seu conceito (fim); tratando-se, portanto, apenas de uma finalidade formal subjetiva.  Não é preciso conhecer o “fim”, pois a simples forma, sem conhecimento do fim a que se destina, apraz por si própria no ajuizamento (CJ §48). Beleza é, portanto, a forma da conformidade a fins de um objeto, na medida em que ela é percebida nele sem representação de um fim. Fim é o conceito - enquanto fundamento - de um objeto, i.e., na medida em que este conceito é tomado como causa do objeto em questão. Finalidade é a própria causalidade de um conceito em relação a um objeto. Conformidade a fins é o acordo do “objeto” com sua constituição (sua forma). Porém, a “conformidade a fins”  pode ser “sem fim”, como ocorre no ajuizamento estético (CJ Intr.IV e §10). “Finalidade sem fim” é aquela que não está sob a legislação de um conceito (determinante), e onde a representação não se refere ao objeto (conceitual ou empírico), mas unicamente “à representação formal do objeto” no sujeito. Aqui a conformidade (ou concordância) da representação do objeto com nossas faculdades cognitivas é apenas formal, visto não comportar nenhum fim determinado (objetivo ou subjetivo) a que o sujeito pudesse encontrar no objeto. Na experiência estética, o fundamento do prazer é colocado somente na forma (universal em todo sujeito cognoscente) do objeto e em nenhuma sensação empírica. Portanto, é possível afirmar a universalidade do juízo estético tomando como base especialmente estas “condições de reflexão”, que são válidas a priori universalmente (CJ Intr. VII). “O fundamento para este prazer [estético], escreve Kant, se encontra na condição universal, ainda que subjetiva, dos juízos reflexivos, ou seja, na concordância conforme fins de um objeto (seja produto da natureza ou da arte) com a relação das faculdades do conhecimento entre si” (CJ Intr. VII). E como esta complacência estética é julgada como estando necessariamente ligada à representação - “formal” - [e forma é uma estrutura a priori em todo sujeito racional/sensível], por conseguinte, [deve-se pressupor válida] não simplesmente para o sujeito que apreende esta forma [tida como bela], mas sim para todo aquele que julga em geral (CJ Intr. VII). [viii]
A pretensão kantiana com a afirmação de “independência de interesse” é, ainda, a de estabelecer uma distinção entre a complacência estritamente estética e as outras esferas de “prazeres”: o prazer exclusivamente sensível (orgânico, físico-animal), o “prazer” moral e o “prazer” intelectual. Para Kant o juízo estético é um processo de nossa mente racional, embora envolvendo plenamente nossas capacidades sensíveis. Na tentativa de diferenciar tal complacência (que é “desinteressada” e não objetiva nenhum fim - mas, frisemos bem: desinteressada apenas em seu processo sensível/mental, não empírico ou factual -) de todos os outros “interesses”, tanto os que têm por causa ou fim nossa razão (o conhecimento e/ou a ação-moral) quanto os exclusivos de nossas experiências sensoriais (o “agradável”, a “amenidade” sensível ou o “gozo-patológico”), é que ele enfatiza o caráter “desinteressado” desta. O agradável, o inteligível, o bom ou o bem moral podem nos oferecer uma satisfação, mas será sempre uma satisfação “interessada”, portanto, não-estética. A única complacência desinteressada e livre é a complacência no belo “pois nenhum interesse, quer dos sentidos quer da razão arranca aplausos” (CJ §5); ou seja, é a única complacência que sentimos sem sermos coagidos a isso nem por nossas “inclinações” de natureza animal e sensível (físico-orgânica) e nem por nossa natureza moral e racional. A complacência no belo é desinteressada pois não se explica por nenhuma “conformidade a fins” objetiva ou subjetiva e nem por nenhum gozo físico “patologicamente condicionado”.
Uma observação. Em Kant, patológico designa o que constitui a faculdade inferior de desejar (CJ§12), i.e., as inclinações naturais humanas, condicionadas pelas leis da Natureza (heteronomia), ou seja, independentes da autonomia (“liberdade”) do sujeito da razão/moral.  Para ele somente a “razão-prática” (moral = ao fim último a que a existência humana se destina - CJ §42, § 86) é isenta de todas as inclinações sensíveis, constituindo, assim, a “faculdade de desejar superior.” Desse modo, escreve Terry Eagleton, “o desvio de Kant em direção ao sujeito não é de nenhum modo um desvio para o corpo, cujas necessidades e desejos transbordam o desinteresse do gosto estético. O corpo não pode ser figurado ou representado dentro da moldura da estética kantiana; e a obra de Kant conduz, coerentemente a uma ética formalista, uma teoria abstrata dos direitos políticos, e a uma estética ‘subjetiva’, mas não-sensualista.” (EAGLETON, 1993, p.22)
A faculdade de conhecer (objetivamente), o entendimento, subsume os fenômenos à legislação determinante de seus conceitos, categorizando as leis da Natureza. A faculdade de desejar, a razão prática, persegue uma finalidade última e tem como domínio a liberdade. A “razão-estética”, a Faculdade do juízo, é uma razão mediadora que, por sua capacidade de conexão (reflexiva), torna compatível legislações tão opostas, quanto as da Natureza (determinismo) e da liberdade (autonomia do sujeito moral). “Na família das faculdades de conhecimento, escreve Kant, existe ainda um termo médio entre o entendimento e a razão. Este é a faculdade do juízo” (CJ Intr. III). Esta faculdade (conectiva) é específica dos seres racionais/sensíveis. A capacidade de ajuizar esteticamente o belo trata-se de algo que só tem particularmente validade para o homem, este ser-intermediário entre o puro-racional e moral e o extremo-sensível (animal). Os pássaros, por exemplo, são capazes de sentir prazer (um prazer meramente sensorial: físico-orgânico) com o canto de seus companheiros, mas somente o homem é capaz de sentir um prazer estético, i.e., de ajuizar esteticamente belo, tanto o canto dos pássaros, como uma bela sinfonia. O ajuizamento estético é o que torna possível a passagem entre a sensibilidade e a razão: entre nossa condição originária animal e nosso destino racional-moral: é o juízo de gosto que realiza a passagem do gozo dos sentidos ao sentimento moral (CJ §41). “Amenidade vale também para animais irracionais; escreve Kant, beleza somente para os homens, i.e., entes animais mas contudo racionais, mas também não meramente enquanto tais (por exemplo, espíritos), porém ao mesmo tempo enquanto animais; o bom, porém, vale para todo o ente racional em geral” (CJ §5). Ou, como enfatiza Hannah Arendt: “A mais decisiva diferença entre a Critica da razão prática e a Crítica da faculdade do juízo é que as leis da primeira são válidas para todos os seres inteligíveis, enquanto as regras da segunda são estritamente limitadas aos seres humanos na Terra” (ARENDT, 1992, p.21). A complacência no belo diz respeito somente ao homem, ao colocar em ação sua sensibilidade, seus sentimentos e sua razão. Apenas o homem pode vivenciar uma experiência propriamente estética e assim realizar um juízo de gosto. Assim, a faculdade do juízo pertence exclusivamente à razão humana, e não à razão em geral.
Kant define  juízo como a faculdade de pensar que permite relacionar o particular com o geral, instaurando, na terceira Crítica, a distinção entre juízos determinantes e reflexivos (CJ Intr. IV). O juízo é determinante quando é dado o geral (a regra, o princípio, a lei) e nele  subsume o particular (o singular); e é reflexivo quando é dado o particular para se buscar o geral do qual ele está subordinado. O particular, nesse caso, torna-se o exemplo que precede a lei (a regra) e permite descobri-la. O juízo reflexivo não determina um “conhecimento” (no sentido lógico-conceitual das categorias do entendimento), e a regra que inventa só é válida para ele. A faculdade reflexiva, portanto, dá uma lei que é válida somente a si mesma e não para Natureza, - esta segue as “leis universais” que tem seu fundamento no nosso entendimento (CJ Intr. IV). A faculdade do juízo estética de gosto faz, assim, “um curto-circuito conceitual ao ligar particulares concretos na sua imediatez a uma espécie de lei universal, uma lei que de nenhum modo pode ser formulada”, observa Eagleton. “Na estética, diferentemente das regiões da razão pura e da razão prática, o individual não é abstraído ao universal, mas é de algum modo elevado ao universal mantendo a sua particularidade [subjetividade universal]” (EAGLETON, 1993, p.73).
O julgamento estético, ao pretender valer para todos, devido a seu caráter de universalidade, tem uma pretensão similar ao do conhecimento (i.e., “como se” fosse um). No juízo estético, escreve Kant, (CJ §6) julga-se como se a beleza pertencesse ao objeto (fosse uma qualidade essencial deste) e reivindica-se universalidade como se o juízo de gosto fosse um juízo de conhecimento (um juízo-lógico-conceitual). O juízo de gosto “é semelhante ao juízo lógico no fato de que ele afirma uma universalidade e necessidade, mas não segundo conceitos do objeto, conseqüentemente, apenas subjetiva” (CJ §35). O conhecimento objetivo é o que exige uma universalidade a realizar-se por (e sob a determinação de) conceitos. Já o juízo estético de gosto é o que se dá imediatamente, sem mediação de conceitos. Gosto, diz Kant, é a “faculdade de ajuizamento daquilo que torna nosso sentimento universalmente comunicável em uma representação dada sem mediação de um conceito” (CJ §40), ou “belo é o que é representado sem conceitos como objeto de uma complacência universal” (CJ §6). Desse modo, embora se assemelhe, o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (caso fosse, estaria sob a legislação determinante dos conceitos), “por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo” (CJ §1).
Kant tem por preocupação central (não propriamente os juízos, já efetivados sob sua forma gramatical, mas) a faculdade capaz de realizar julgamentos (juízos) estéticos de gosto. Esta faculdade, por não estar sob a legislação determinante de conceitos, encontra, inevitavelmente, dificuldades quanto a seus enunciados lógicos. A forma gramatical dos juízos estéticos, nos diz Terry Eagleton, é, em Kant, de fato ambígua e enganadora. Em proposições como “esta flor é bela”, os adjetivos parecem ser predicativos, mas isto é ilusório: essas proposições têm a forma lógica, mas não seu conteúdo e sentido. “A gramaticalidade desses enunciados está em conflito com o seu verdadeiro estatuto lógico” (EAGLETON, 1993, p.72). Os enunciados que traduzem os juízos estéticos parecem ser descrições do mundo, mas são na verdade declarações do que ocorre no interior do sujeito: dizem as relações descompromissadas de nossas faculdades cognitivas.
É um juízo de conhecimento se enunciamos, por exemplo: “a água ferve a 100 graus”. Trata-se de uma regra geral, que pode ser experimentada, ter comprovação objetiva e ser comunicada universalmente por conceitos lógicos. Espera-se que a água infalivelmente ferva ao alcançar 100 graus, independente do estado de espírito do sujeito que presencia a experiência. Do mesmo modo, todo sujeito racional deve aceitar este juízo. Ao contrário do exemplo anterior, não podemos enunciar “este girassol é belo” e exigir uma comprovação objetiva, pois a beleza não se encontra no objeto (o girassol), não é essência e nem uma qualidade deste.  No entanto, deve-se exigir uma universalidade de um juízo estético, porém, uma universalidade não objetiva (conceitual), pois se assim procedêssemos teríamos de admitir ser a beleza a essência ou uma qualidade necessária do objeto (enquanto objeto cognoscível). Portanto, essa universalidade é apenas subjetiva (embora não particular, exclusiva de um sujeito específico); ou seja, é algo que pertence a todo o sujeito da experiência estética. Visto que, o sujeito kantiano não é nem o psicológico ou uma subjetividade pessoal (esta ou aquela pessoa, este ou aquele grupo), mas o sujeito universal: o Sujeito Transcendental - uma estrutura (ou capacidade) a priori da razão humana.
Afirmar não haver um juízo lógico-conceitual de gosto, equivale a dizer não ser possível provar, nem objetiva nem conceitualmente, que algo seja belo: o belo (enquanto experiência estética) não é conceituável. Para Kant, é impossível um princípio objetivo de gosto estético puro (CJ §34), pois nenhum argumento objetivo pode nos convencer de que algo seja belo. Assim como também nada da realidade empírica, nem ninguém, enquanto sujeito empírico, pode estabelecer o que seja um princípio norteador de gosto (puro). Se enunciarmos: “girassóis são belos”, temos apenas uma proposição conceitual [embora sem fundamento, configurando, portanto, uma proposição insustentável; visto que, girassóis não são belos para todos, e nem todos os girassóis são belos] e não um enunciado que equivalha a um juízo estético de gosto, por ter seu fundamento neste. Em “este girassol é belo”  temos também um juízo lógico, porém fundado em um juízo de gosto. Este tipo de juízo é aquele que nos possibilita enunciar  factualmente  (dentro da realidade social) o belo.  Não se trata de um juízo propriamente estético (puro), uma vez que este não pode ser pronunciado conceitualmente, pois ao enunciarmos (i.e., ao “logicizarmos”) ele deixa de ser um juízo estético (subjetivo) e passa a ser um juízo de caráter lógico (mesmo que tomando por base o ajuizamento estético), ou então, um juízo empírico.
Quando alguém diz, a respeito de algo que lhe apraz, por exemplo, do colorido de uma flor: “gosto do amarelo deste girassol”, esta pessoa não profere nenhum juízo estético de gosto (puro), pois se prende a uma sensação: a simples percepção desta cor por um órgão dos sentidos. Não se pode pretender que seja um juízo universal (válido para todos os homens) - aqui há apenas um juízo de gosto empírico: um juízo particular e pessoal.  Pois pode ocorrer que um outro perceba a cor, da flor em questão, de maneira diversa; que este outro seja daltônico, por exemplo, ou ainda, que ele seja cego de nascença, jamais tendo visto uma cor.  Ou ainda, pode-se duvidar que todos os homens percebam as cores do mesmo modo, pois embora possuindo o mesmo mecanismo visual (órgãos), estes podem diferir quanto às suas potencialidades. O mesmo se daria, p.ex., quanto a um som. Se alguém afirma: “gosto desta música, ela me apraz”, não pode desejar que este seja um juízo universalmente válido para todo e qualquer homem. Pois pode ocorrer de um outro não ter a mesma acuidade auditiva deste sujeito (particular) que assim julga; outro ser de uma cultura diversa deste e, portanto, tal som lhe soe estranho, disforme, incômodo; ou ainda um outro seja completamente surdo de nascimento, sem nunca ter ouvido um som em sua vida. E assim poderíamos prosseguir com uma infinidade de exemplos, com gostos que provém primordialmente dos sentidos físicos (a dimensão do sensível) e não do “sentimento” (que é a dimensão do sensível-racional, da reflexão). Agora, se alguém ajuíza “esta flor é bela”, tal fórmula impõe uma universalidade, de modo que um outro (empírico) pode até discordar quanto à beleza da flor em questão – “esta” determinada flor -, mas não pode discordar deste sujeito que ajuíza tal flor bela. O sentimento do belo está tanto nele quanto em qualquer outro sujeito (sensível-racional: homem). E embora um outro possa discordar empiricamente ou ainda objetivamente (conceitualmente), ele deve concordar subjetivamente (em uma dimensão transcendental, onde o EU e o OUTRO se comungam no movimento de uma mesma reflexão, i.e., participam a mesma comunidade humana), pois ambos devem possuir a capacidade de ajuizar algo belo. Embora cego, assim podemos interpretar, ele deve concordar, no ajuizamento do belo, com um outro que enxerga, mesmo que seja um julgamento quanto ao visível; embora surdo ele deve concordar com um outro que ouve, mesmo que diga respeito à sonoridade. Não é necessário um acordo na dimensão da experiência empírica, ou um acordo conquistado através de argumentos lógicos, para que alguém, alguma vez já tendo ajuizado algo belo, reconheça a validade universal de seu juízo. Assim, se é possível a um surdo de nascença concordar num juízo a propósito de uma sonoridade (que ele nunca experimentou) é porque já ajuizou algo belo em outras dimensões de sua sensibilidade (em concordância com o livre jogo de suas faculdades).
O juízo de gosto, tomando a singularidade de um particular busca o universal. Mas com a peculiaridade de que este universal não é, como no entendimento, um conceito, ou uma lei lógica. Este universal, no caso do ajuizamento estético de gosto, é, paradoxalmente, a “complacência de cada um”, ou melhor, a simples possibilidade de “validade universal” desta complacência.  Escreve Kant: “assim como o ajuizamento de um objeto em vista de um conhecimento em geral tem regras universais - também a complacência de cada um pode ser proclamada como regra universal para todos” (CJ §31 - grifo nosso).  De modo que, o que se apresenta como válido “para qualquer um”, “não é o prazer, mas a validade universal deste prazer (...) que é representada a priori em um juízo de gosto como regra universal” (CJ §37). Uma validade que se encontra na simples capacidade que tem o espírito humano de ajuizar esteticamente (i.e., de relacionar um particular dado a sua forma, porém sem chegar a “completar” esta subsunção conformando-o ao seu conceito), e de reconhecer em todo outro (enquanto pertencente à Humanidade) esta mesma capacidade.
Não se deve nunca, diz Kant, confundir um ajuizamento estético de gosto como, p.ex., “esta flor é bela”, interpretando-o por “eu gosto desta flor”; pois os juízos estéticos, enquanto processo sensível/racional, são, como vimos, puramente desinteressados e não tem nada a ver com as inclinações ou desejos contingentes de alguém. O ajuizamento do “belo” é apenas um “jogo” entre nossas faculdades racionais, que se dá a partir de uma experiência sensível singular, sem visar, em seu processo, nenhum objetivo, nenhum “interesse”, seja da ordem do conhecimento (conformidade aos princípios objetivos/ conceituais), seja de ordem moral (o bem ou o bom), seja de ordem física (amenidade sensível) ou de ordem sócio-histórico-cultural-etc. Podemos até pronunciar juízos do tipo: “o amarelo deste girassol me é (particularmente) agradável”; porém teremos aí apenas um “pseudo-juízo” de gosto, e não um ajuizamento de “gosto puro” (i.e., estético), mas um juízo fundado nos gostos dos sentidos (na amenidade-sensível). Entretanto, diz Kant, em sociedade, para a cultura, o belo só interessa empiricamente (CJ §41). “Foi suficientemente demonstrado, escreve o filósofo, que o juízo de gosto, pelo qual algo é declarado belo, não tem de possuir como fundamento determinante nenhum interesse. Mas disso não se segue que depois que ele foi dado como juízo estético não se lhe possa ligar nenhum interesse. Esta ligação, porém, sempre poderá ser somente indireta” (CJ §41). Tal juízo, embora “fundado” no juízo de gosto, não é um juízo de gosto “puro”. Um juízo é de “gosto-puro”, afirma Kant, “somente na medida em que nenhuma complacência meramente empírica é misturada ao fundamento de determinação do mesmo” (CJ §14). Por exemplo: quando ajuizamos “esta flor é bela”, não operamos assim por associarmos sua beleza com o emprego útil que fazemos desta para decorações (de festas, casamentos, funerais), ou por  associarmos sua beleza à sua “utilidade natural”, i.e., ao fato desta ser o “órgão reprodutor” dos vegetais; muito embora, em nossa realidade empírica, possamos fazer a associação da beleza de tal flor com suas respectivas utilidades e objetivos. Os juízos estéticos “podem, assim como os teóricos (lógicos), ser divididos em empíricos e puros. Os primeiros são os que afirmam uma amenidade ou desamenidade, os segundos os que afirmam a beleza de um objeto ou do modo de representação do mesmo; aqueles são juízos dos sentidos (juízos estéticos materiais), estes (enquanto formais), unicamente autênticos juízos de gosto” (CJ §14 - grifo nosso); visto que, estes últimos, dizem respeito exclusivamente aos processos racionais/sensíveis (o ajuizamento) da faculdade de julgar.
Não é possível encontrar um princípio objetivo de gosto que nos forneça o critério universal do belo: “não pode haver nenhuma regra de gosto objetiva, que determine através de conceitos o que seja belo. Pois todo juízo proveniente desta fonte [do gosto] é estético; i.e., o sentimento do sujeito, e não o conceito de um objeto, é seu fundamento determinante” (CJ §17 - grifo nosso). E é por isso que não pode haver ciência do Belo em nenhum sentido (CJ §44, §60) - como é pretensão das estéticas de cunho “racionalista” (entre outras), que associam o belo a uma manifestação sensível da Verdade (ou do Bem ou da Razão) - onde o “objeto estético” seria aquele capaz de desvelar a Verdade (do Ser). Se o estético não é o cognitivo, possui, entretanto, “algo da forma e da estrutura do racional; e ele assim nos une com toda a autoridade da lei, mas num nível mais afetivo e intuitivo. O que nos reúne enquanto sujeitos não é o conhecimento, porém uma inefável reciprocidade de sentimentos” (EAGLETON, 1993, p.59). O sentimento, no acontecer de uma experiência estética, não é algo “sentimental” ou meramente “psicológico” (como na estética empirista), mas o resultado do livre jogo (i.e., da “comunhão”) das faculdades do entendimento e da imaginação.
São duas, como já frisamos, as fontes que nos possibilitam o conhecimento: a sensibilidade e o entendimento. Sensibilidade é a capacidade de receber representações pelo modo como nós somos afetados pelos objetos. Entendimento é a faculdade de produzir conceitos, ou seja, sua função é determinar e sintetizar em conceitos as intuições sensíveis. O entendimento é a força ordenadora, sintética. A sensibilidade é aquela que acolhe em si (receptividade) as sensações e representações não conceituais e carentes de ordem e as oferece ao intelecto (entendimento) para elaboração (esquematismo). Nesta elaboração entra em jogo a imaginação. No conhecimento, a imaginação tem por função coordenar o múltiplo das sensações para produzir uma imagem ou representação unitária (do objeto). Na terceira crítica, a imaginação é definida como a faculdade intermediária que liga as intuições da sensibilidade aos conceitos do entendimento (CJ Intr. VII). A imaginação, quando agindo como ferramenta do juízo reflexivo, é a capacidade de interligar, de conectar (faculdades, idéias e saberes). Com o prazer estético, proveniente do juízo reflexivo, o homem descobre um acordo meramente funcional da imaginação com o entendimento, num jogo livre e harmônico que não está submetido a regra de um conceito. A “liberdade da faculdade da imaginação”, escreve Kant, “consiste no fato de que esta esquematiza sem conceitos, assim o juízo de gosto tem que assentar sobre uma simples vivificação da imaginação (...) e do entendimento (...) portanto sobre um sentimento” (CJ §35 - grifo nosso). Escreve ainda: “A comunicabilidade universal subjetiva do modo de representação em um juízo de gosto, visto que ela deve ocorrer sem pressupor um conceito determinante, não pode ser outra coisa senão o estado de ânimo no jogo livre da faculdade da imaginação e do entendimento” (CJ §9 - grifo nosso). Assim, no estético, embora o jogo da imaginação não recorra a nenhum conceito para regular sua organização, estrutura-se apesar de tudo como se pudesse satisfazer por si mesmo às exigências de regras que são as do juízo de conhecimento. Existe, então, um acordo simplesmente livre e contingente entre a imaginação e o entendimento, acordo totalmente imprevisível e não controlável (CJ Intr. VI e VII).
A capacidade imaginativa tem, assim, duas funções: “livre jogo” (juízo estético) e acordo-esquematizante (conhecimento/lógico). Todo conhecimento realiza-se através deste acordo entre as faculdades cognitivas. No caso do juízo estético esse “acordo” não desemboca no esquematismo, é apenas um “livre jogo” (o livre vaguear das faculdades cognitivas), i.e., não tem por finalidade um conhecimento (objetivo / conceitual). Tal acordo entre nossas faculdades deve existir em todo o homem e é a condição subjetiva do ato de conhecer (CJ §9). A comunhão (o acordo) que possibilita este livre jogo Kant denomina “sentido comum” [Gemeinsinn, algumas vezes traduzido por “senso comum” -; mas Kant utiliza também a expressão Sensus communis (aestheticus e logicus) - (CJ §40)]; e é o que fundamenta (serve de “princípio subjetivo”) a universalidade do juízo estético e, portanto, a sua comunicabilidade subjetiva universal. O juízo de gosto, diz Kant “têm de possuir um princípio subjetivo, o qual determine somente através de sentimento e não de conceitos, e contudo de modo universalmente válido, o que apraz e desapraz. Um tal princípio, porém, somente poderia ser considerado como um sentido comum” (CJ §20 -grifo nosso).
Alguns comentadores se dividem quanto à interpretação do que venha a ser esse “sentido comum” (“senso comum”) na Crítica do Juízo. Deleuze, por exemplo, enfatiza as relações entre as faculdades que ocorre no interior do sujeito do conhecimento. As faculdades de conhecimento superior, embora autônomas, mantém entre si “comunidade”, o dito, “senso comum”; ou seja, Deleuze interpreta por este termo a análise kantiana das relações mediáticas entre nossas  faculdades cognitivas. Diz ele: “o acordo livre entre as faculdades define o que se pode chamar de senso comum” (DELEUZE,, 1976, p.35). Assim também Lyotard: “Esse senso comum não é absolutamente falando um ‘sentido externo’ (...), mas o ‘efeito resultante do livre jogo das faculdades de conhecer’” (LYOTARD, 1993, p.24 e p.203). E de fato, escreve o filósofo: “Somente sob a pressuposição de que exista um sentido comum (pelo qual, porém, não entendemos nenhum sentido externo, mas o efeito decorrente do jogo livre de nossas faculdades do conhecimento), somente sob a pressuposição, digo eu, de um tal sentido comum o juízo de gosto pode ser proferido” (CJ §20 - grifo nosso). Hannah Arendt já prefere uma interpretação mais, como diz Lyotard, “sociologizante ou antropologizante” (LYOTARD, 1993, p.24), enfatizando tanto o jogo interno das faculdades, quanto o caráter intersubjetivo e político-social da comunicabilidade do juízo estético[ix].  E realmente em Kant é possível encontrar base favorável também a esta interpretação quando, por exemplo, ele escreve: “Por sensus communis se tem que entender a idéia de um sentido comunitário, i.e., de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro” (CJ §40). Ou ainda, pelas palavras da própria Arendt: “(...) a faculdade do juízo, como a faculdade do espírito humano para lidar com o particular; a sociabilidade dos homens como condição de funcionamento daquela faculdade, ou seja, o vislumbre de que os homens são dependentes de seus companheiros não apenas porque têm corpo e necessidades físicas, mas precisamente por suas faculdades do espírito” (ARENDT, 1992, p.22). Porém, convém salientarmos que “senso comum” não equivale aqui ao termo em seu sentido “vulgar”; i.e., como tal expressão é compreendida no linguajar corrente: como um apanhado de preconceitos e opiniões que alcança uma certa unanimidade. Ou seja, habitualmente “pelo termo comum (...) entende-se algo como vulgare, o que se encontra por toda a parte e cuja posse absolutamente não é nenhum mérito ou vantagem” (CJ §40).
Na interpretação de Luc Ferry (1994, pp.115-162), a solução para a antinomia do gosto (a subjetividade universal - que é o fundamento da comunicabilidade universal estética) encontra-se na relação entre finitude (sensível/racional) e a idéia de sistema (uma idéia da razão) - uma relação possível graças aos juízos teleológicos. O juízo estético “se baseia na presença de um objeto que, se é belo (...), desperta uma idéia necessária da razão que é, enquanto tal, comum à humanidade.” (FERRY, 1994, p.130) A existência do objeto belo, no entanto (diferentemente de um objeto de conhecimento), é contingente em relação às idéias. É do acordo contingente entre o real particular e a exigência universal de sistematicidade, organicidade, finalidade que nasce um prazer estético, ao provocar, de modo livre e contingente, o acordo das faculdades.
O próprio Kant também torna possível mais esta interpretação, quando nos §§ 55-57 indica a resolução para a antinomia do gosto (estético). Tal antinomia, como já mencionamos, aponta para uma universalidade não conceitual (não-determinada pelos conceitos puros do entendimento) e uma subjetividade “sem sujeito” (não particular, individual, pessoal ou psicológica). O juízo de gosto para ser universal deve fundar-se sob um conceito, mas como não pode ser um conceito determinado (um conceito lógico fornecido pelo entendimento), deve o juízo “ser  guiado” pelo “princípio subjetivo, ou seja, a idéia indeterminada do supra-sensível” (CJ §57). A resolução da antinomia, diz o filósofo, nos coage a olhar para além do sensível e a procurar no supra-sensível o ponto de convergência de todas nossa faculdades a priori (CJ §57). É, portanto, a referência às idéias (da razão) que irá permitir fundamentar o senso comum (tanto no sentido da comunidade interna das faculdades, como no sentido de intersubjetividade).
São as idéias que desempenham o papel de princípio para a “reflexão” estética. Idéias, como as mencionadas na Segunda Parte da CJ, que trata dos juízos teleológicos: idéia de sistema, de totalidade e finalidade, i.e., algo que nos ajuda a pensar a Natureza como um todo coerente e sistemático, um todo interconectado segundo fins (idéia de Mundo), trazendo-nos a idéia de apreensão de conjunto (totalidade), organicidade (formal), com uma finalidade implícita. Idéias que ajudam o homem a se pensar como parte desta “totalidade orgânica” (Mundo/Natureza), tendendo a um fim (Fim Último/Deus/moral). Idéias necessárias, mas nunca dadas na “intuição”, passíveis só de serem pensadas, mas nunca conhecidas.[x]
O princípio teleológico é o principio a priori (universal e necessário) do juízo reflexivo, é ele que serve de fundamento (regulador) para o conhecimento da unidade sistemática das formas e das ligações e conexões entre elementos diversos. O pensar reflexivo ocorre graças à capacidade do espírito humano, com o auxílio da imaginação e das idéias da razão, em conectar e interligar a diversidade das “partes” (múltiplas perspectivas possíveis) em um (hipotético) Todo sistemático, orgânico e tendendo a um (hipotético) Fim. Tal como se nos encontrássemos em uma perspectiva superior (a perspectiva de Deus), uma perspectiva panorâmica, a nos possibilitar uma visão geral, assim nos possibilitando a compreensão das inter-relações e interconexões entre os múltiplos elementos em questão (promovendo o objetivo final de todo conhecimento - CJ Pról. p.12). “Na resolução de uma antinomia trata-se da possibilidade de que duas proposições aparentemente contraditórias entre si de fato não se contradigam, mas possam coexistir, mesmo que a explicação da possibilidade de seu conceito ultrapasse a nossa faculdade de conhecimento. E é igualmente compreensível que essa aparência [de contradição] também seja natural e inevitável à razão humana” (CJ §57). Toda contradição desaparece, no entanto, se afirmarmos que o juízo de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado e, portanto, inadequado para o conhecimento (lógico), mas salutar para juízo estético. Só assim, através desse conceito indeterminado, o juízo alcança validade para qualquer um (“em cada um é verdade como juízo singular que acompanha  imediatamente a intuição” - CJ §57), porque “o seu princípio talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substrato supra-sensível da humanidade” (CJ §57).
Pode-se então interpretar que a noção de senso comum e de intersubjetividade (a comunicabilidade universal subjetiva) funciona como se fosse uma idéia da razão (assim como as Idéias de Mundo e Deus nos possibilitam pensar a comunidade dos conteúdos diversos na forma e as conexões e inter-relações entre múltiplas perspectivas, idéias e saberes). E, muito embora não seja uma idéia da razão, esta seria invocada simbolicamente - com um sentido “regulador” - como se fosse um princípio moral: que leva em conta a humanidade no todo -, sugerindo uma comunidade intersubjetiva de sujeitos humanos.  De onde a importância da máxima do juízo reflexivo, fundamentada pela faculdade de julgar, a “maneira de pensar alargada”, ou seja, de pensar pondo-se no lugar de todos os outros [inter-relaciona-se aqui universal e particulares]: “refletindo sobre o seu juízo desde um ponto de vista universal (que ele somente pode determinar enquanto se imagina no ponto de vista dos outros)” (CJ §40).  Se a faculdade do juízo, em sua reflexão, leva em conta o modo de representação de qualquer outro homem, é com o fim de vincular o juízo particular do sujeito (e sua capacidade de ajuizar) como pertencente à Humanidade em geral, e não somente como resultante de uma subjetividade particular (“psicológica”).
Ao fundar a idéia de Humanidade, as noções kantianas de universalidade e de validade universal, não permanecem mais em uma dimensão meramente transcendental, pois adquirem um significado pertencente à dimensão do político: a sociabilidade entre os humanos. Uma comunidade humana intersubjetiva, que nos permitirá falar em uma sociabilidade fundada sobre as possibilidades de comunicabilidade universal entre nós humanos, devido ao senso comum de nossa razão. “Humanidade <Humanität> significa de um lado o universal sentimento de participação e, de outro, a faculdade de poder comunicar-se íntima e universalmente; estas duas propriedades coligadas constituem a sociabilidade conveniente à humanidade <Menschheit>, pela qual ela se distingue da limitação animal.” (CJ.§60).
Quanto às interpretações confrontadas anteriormente (Deleuze, Lyotard e Arendt), uma leitura da terceira Crítica nos possibilita acreditar que, em Kant, o termo “senso comum” tem ambos os sentidos mencionados. No entanto, é preciso frisar que a interpretação aqui se pautou em nossa língua (portuguesa), onde nos foi possível o jogo com a palavra comum. Em alemão, no entanto, os termos citados: “sentido comum” ou “senso comum” (GEMEINSINN) e “comunidade” (GEMEINSCHAFT) não possuem a mesma formação de “comunicação” ou “comunicabilidade” (MITTEILKBARKEIT), donde Mitte = “meio” e não a “comum” (GEMEIND). Mas, a nosso ver, o sentido permanece. E é assim que podemos dizer (em nossa língua) que a imprescindível comunhão (o acordo) das faculdades racionais entre si, ou seja, o jogo harmônico da imaginação e do entendimento, sem objetivar nenhum conhecimento lógico-conceitual (i.e., sem estar sob a legislação de um conceito determinante, mas a simples conformidade a fins - à forma), que ocorre no interior do sujeito quando da experiência estética do belo, é algo “comum” a toda “comunidade” dos homens. É algo que mantém “comunidade” com todo sujeito-racional-sensível (o homem), possuindo, desse modo, a possibilidade de ser “comunicado” universalmente, porém não através de conceitos (como no juízo de conhecimento), mas apenas (inter)subjetivamente. Para haver acordo (comunhão) entre as faculdades é preciso algo em comum: uma faculdade intermediária. Assim também entre os homens: comunicação pressupõe algo em comum, este “algo”, no ajuizamento estético do belo, é o “sentimento” (no sentido kantiano); i.e., aquilo que resulta do livre jogo (da comunhão) entre as faculdades cognitivas, e que constitui uma capacidade comum a todo sujeito sensível/racional. No julgamento estético, escreve Eagleton, “estamos exercendo uma forma valiosa de intersubjetividade, estabelecendo-nos como uma comunidade de sujeitos sensíveis ligados por um sentimento de nossas capacidades compartilhadas” (EAGLETON, 1993, p.59).
Estas “nossas capacidades compartilhadas” não devem, contudo, ser confundidas com o fato de muitos concordarem quanto a um determinado gosto no plano da realidade social empírica, pois nesse caso temos apenas uma “unanimidade” (CJ §7) de gostos e não um ajuizamento estético. A “unanimidade” é um “consenso empírico”, possuindo uma falsa universalidade, pois depende de condições empíricas, podendo, no máximo, oferecer regras gerais, mas não universais. Tanto as estéticas de cunho racionalistas quanto as empiristas não conseguem indicar uma verdadeira intersubjetividade porque o sujeito da experiência estética permanece uma “mônada” (cogito), fechada em si mesma e mantendo uma relação apenas exterior com as outras mônadas. Estas concepções do sujeito partem da interpretação do cogito sob uma perspectiva dogmática, definindo a objetividade como uma exterioridade e a subjetividade como a interioridade. No entanto, não há, em Kant, uma “coisa em si” exterior ao sujeito, onde precisamos distinguir as que são válidas só para mim (subjetivas) e as que são válidas universalmente (objetivas). A objetividade não é exterior à representação realizada pelo sujeito, mas designa o universalmente válido. É objetivo o que faz parte da esfera logicizável do entendimento (aquilo que se tornará objeto do conhecimento científico) e é subjetivo o que concerne ao estético (à esfera do não-logicizável).
Enquanto o racionalismo dogmático busca uma universalidade fundamentada particularmente na razão, o empirismo busca uma generalidade fundamentada empiricamente (um acordo resultante da simpatia, entendida como o fato de se ter em comum o mesmo sentimento). Na estética racionalista a singularidade própria daquele que profere um juízo de gosto dissolve-se numa razão universal que se comporta de maneira dogmática para com o particular. Esta postura “dogmática” da razão impõe uma logicidade ao belo (Belo é aquilo que equivale à Verdade, permanecendo o sensível subordinado à Razão). Na estética empirista, a singularidade dos sujeitos parece estar preservada; porém, por se fundamentar no “psicológico”, i.e., em uma subjetividade pessoal, empírica, o belo aqui permanece apenas uma variedade do agradável e o “senso comum” é uma simples generalidade factual (o consenso empírico, a unanimidade). No empirismo da crítica do gosto, nos diz Kant (CJ §58), o fundamento de determinação do gosto é empírico, i.e., só pode ser dado a posteriori pelos sentidos e, nesse caso, “o objeto de nossa complacência não seria distinto do agradável”. Já o racionalismo acredita que o princípio de determinação se “assenta em conceitos determinados”, mas se assim fosse o juízo de gosto “não seria distinto do bom”.  Mas um “juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento e a beleza não é nenhuma qualidade do objeto, assim o racionalismo do princípio de gosto jamais pode  ser posto no fato de que nesse juízo a conformidade a fins seja pensada como objetiva (...), i.e., que o juízo tenha a ver (...) com a perfeição do objeto” (CJ §58). Contrariamente ao que afirma o racionalismo,  o juízo de gosto não se fundamenta em conceitos (regras) determinados, portanto é impossível “disputar” (argumentativamente) acerca dele, tal como nos seria possível caso se tratasse de um juízo de conhecimento científico. No entanto, ele igualmente não se limita a remeter à subjetividade empírica do sentimento. “É preciso, então, escreve Luc Ferry, rejeitar tanto a simpatia [o consenso empírico] quanto a razão dogmática quando se trata de refletir sobre as condições transcendentais de possibilidade de um senso comum estético realmente intersubjetivo: no racionalismo, assim como no empirismo, o fundamento do ‘senso comum’ não é, na verdade, um fundamento da intersubjetividade, assimilada num caso por um universal impessoal e, no outro por uma estrutura simplesmente material”. (FERRY, 1994, p.138)
A “unanimidade” não poderá nunca exigir validade universal, como no caso do juízo estético de gosto, uma vez que a validade universal do juízo de gosto, escreve Kant, “não deve fundar-se sobre uma reunião de votos e uma coletânea de informações [na unanimidade] junto a outros acerca de seu modo de ter sensações, mas deve assentar sobre uma autonomia do sujeito que julga sobre o sentimento de prazer (na representação dada), i.e., sobre o seu gosto próprio” (CJ §31). Podemos até concordar a respeito, por exemplo, do que nos é prazeroso e agradável dentro de nossa realidade social empírica, contudo, não podemos exigir universalidade disto, que é apenas uma eventual unanimidade de nossas opiniões. Não é porque eu e mais um grupo de pessoas gostamos de música barroca que devemos enunciar tal fato como uma lei universal. Até porque este julgamento, por ser um julgamento empírico de gosto, está centrado numa sensação (pessoal ou grupal) ocasionada por um objeto (aqui, uma determinada modalidade musical) e não no ajuizamento estético propriamente, este sim universal. Na estética empirista, o senso comum continua sendo uma simples generalidade factual, logo, somente particular, ligada às particularidades psicológicas dos indivíduos (ou grupos) separadamente.
A comunicabilidade intersubjetiva, possível graças à universal subjetividade do ajuizamento estético, vislumbra assim, como diz Eagleton, “uma comunidade de sujeitos unidos a partir da profundidade de seu próprio ser”, onde o sujeito transcende suas necessidades e desejos, particulares e efêmeros, em nome da idéia de comunidade humana. “Os juízos estéticos são assim ‘impessoalmente pessoais’, uma espécie de subjetividade sem sujeito, ou como Kant o coloca, uma ‘subjetividade universal’” (EAGLETON,1993, p.74 e p.72). Podemos até acreditar que, para Kant, é possível a um “outro” (conquanto este “outro” seja também um sujeito-racional-sensível: um humano), mesmo que pertencendo a uma cultura diferente, a uma classe social diversa, a um outro sexo, ou sendo desprovido de alguma potencialidade física (cego, surdo, mudo, etc.), partilhar conosco da complacência no belo (muito embora esta complacência seja o seu gosto próprio - CJ §31). Não partilhamos nossos gostos por sermos unânimes em nossas preferências empíricas, mas porque compactuamos de um “mesmo” sentimento (resultante do livre jogo de nossas faculdades) ao ajuizarmos (cada um singularmente) belo uma forma dada (também em sua singularidade) no acontecer de uma experiência estética.
Na estética kantiana, portanto, não se trata da abolição da diferença, mas da articulação da diferença (o particular) com a idéia de senso comum (o universal). O universal, no ajuizamento estético, não entra em conflito com o particular, pois funda-se - como ocorre na moralidade e no conhecimento objetivo -, num procedimento (a priori) interno à própria razão. De modo que a singularidade de um sujeito particular pode ser mantida como diferença (“seu próprio gosto”, “o gosto de cada um”) e ao mesmo tempo requerer universalidade. Pois o fundamento do prazer é colocado na forma do objeto e em nenhuma sensação (CJ Intr.VII) - e forma é uma estrutura a priori no sujeito de toda experiência - assim como nas “condições de reflexão”, que operam na subsunção do juízo de gosto, e que são no sujeito de todo julgamento válidas a priori (CJ Intr. VII) - ou seja, tem caráter de universalidade.
Não se deve, no entanto, pensar o “senso comum” kantiano (fundamento da comunicabilidade universal subjetiva) em um horizonte totalmente ideal. É o “senso comum” que garante a comunicação entre os homens, impedindo a total alteridade que ocorreria caso não se supusesse nenhuma possibilidade de partilha, nada que fosse “em comum” para a humanidade[xi]. O “senso comum” demonstra a capacidade que têm os humanos em se comunicarem (intersubjetividade). Para além da comunicação universal objetiva dos conceitos, o “senso comum” traduz, não só o fundamento da comunicabilidade universal subjetiva do estético, mas o próprio fundamento da objetividade (i.e., sua possibilidade). É desta capacidade (intersubjetiva) de comunicação que se vê justificada a possibilidade dos homens em se comunicarem conceitualmente. Como escreve Lebrun: “(...) eu subentendo sempre quando uso conceitos, que os outros têm o poder de entender-me, pois sei que eles são meus semelhantes e que nós intuicionamos da mesma maneira; portanto, posso até imputar-lhe esse poder como um dever. (...) agora parece que os próprios conceitos objetivos, para serem entendidos, supõe antes de tudo nossa pertença à mesma comunidade humana” (LEBRUN, 1993, p.495). Caso o “senso comum” se reportasse apenas a uma idéia da razão, ou apenas a um processo mental (o jogo das faculdades), não poderíamos, visto a diversidade humana, admitir de modo algum comunicação de fato” entre os homens a respeito do gosto, pois este “senso comum” seria sempre ideal, utópico. Caso fosse somente empírico, isento de qualquer universalidade (como é a “unanimidade”), a diferença entre os homens (ou os grupos humanos) seria tão acentuadamente radical, que não mais poderíamos pressupor nenhum acordo, nenhuma comunicação de caráter universal (pois comunicar diz a necessidade de algo em comum); e tal diversidade corromperia de vez a idéia de “humanidade”, i.e., a possibilidade dos homens em se comunicarem universalmente, apesar de toda a alteridade (físico-histórica-cultural-linguística-etc.). Por outro lado se, quanto ao gosto, os humanos basicamente só têm em comum o fundamento da comunicabilidade isso não acaba colocando de fato a pretensão kantiana em uma dimensão ideal ?
Todos os homens têm as mesmas condições subjetivas da faculdade de julgar: é algo que pertence à condição humana (CJ §9). E “embora os críticos”, escreve Kant, “possam raciocinar mais plausivelmente do que cozinheiros, possuem contudo [quanto ao ajuizamento estético] destino idêntico a estes. Eles não podem esperar o fundamento de determinação de seu juízo da força de argumentos, mas somente da reflexão sobre seu próprio estado (de prazer e desprazer), com rejeição de todos os preceitos e regras” (CJ §34). Porque somos humanos (seres sensíveis/racionais) temos as mesmas condições para realizar um juízo estético de gosto que qualquer outro: um vizinho, um estrangeiro, um esteta ou um leigo em arte.
[O que habitualmente “tem a mais um especialista em arte, como o das artes visuais, por exemplo, é somente o seu conhecimento dos processos artísticos e da história da arte, além de um certo condicionamento - para não dizer um certo “adestramento”: um olhar adestrado! - que em nosso contemporâneo linguajar especializado se traduz, pretensiosamente, por: “saber ver”. Não se deve interpretar com isso, no entanto, que a Arte possuiria o mesmo nível de “entendimento” para qualquer um. A Arte, ou a “obra-de-arte”, é algo já objetivado: uma cultura tornada objeto-idéia-conceito. Já não está em jogo, portanto, apenas o ajuizamento (um processo sensível /mental - subjetivo /universal) estético, mas toda uma formação histórico-sócio-político-cultural-etc., que inevitavelmente divide os grupos humanos no interior da realidade social empírica.]
Se Kant, em sua “Estética”, não tem uma preocupação histórica e cultural com a arte ou o gosto artístico é porque, mais do que a diversidade real do mundo, na dimensão da realidade social empírica, a ele interessa (o que acredita ser) o que em comum e de mais digno há em todos os homens: as faculdades racionais do espírito humano, as faculdades capazes de estabelecer um a priori (um “universal”), tanto para o conhecimento objetivo, quanto para a ação moral, quanto para o sentimento estético. O próprio Kant é bastante consciente quanto às prováveis críticas futuras a este respeito: “a investigação da faculdade do gosto, enquanto faculdade de juízo estética, não é aqui empreendida para a formação e cultura do gosto (pois esta seguirá adiante como até agora o seu caminho -...), mas simplesmente com um propósito transcendental, assim me lisonjeio de pensar que ela será também ajuizada com indulgência a respeito da insuficiência daquele fim” (CJ Prólogo, p.14). O que o preocupa em um “julgamento de gosto” é a análise de nossas faculdades racionais quando estão a “julgar” esteticamente; i.e.: o próprio experienciar uma experiência estética. Por isto Kant se detém na faculdade do juízo (interessando-se especialmente pelos processos do ajuizamento), em vez de realizar uma mera crítica do gosto (empírico). Sua filosofia até tem uma preocupação quanto à aplicação no mundo social do uso compartilhado de nossas capacidades espirituais (como vimos na análise do “senso comum”)... Porém, esta não requer dos homens uma boa vontade para torná-la realizável? E quantos de fato se encontram dispostos?

Contra uma filosofia fundada no egoísmo e no apetite - escreve Eagleton - Kant defende uma generosa visão de uma comunidade de fins, encontrando na liberdade e na autonomia do estético um protótipo das possibilidades humanas contrário ao mesmo tempo ao absolutismo feudal e ao individualismo possessivo. Se não há nenhum meio pelo qual este ideal admirável de respeito mútuo, igualdade e compaixão possa chegar à realidade material; se é necessário ensaiar na mente o que não pode ser encenado no mundo, não se pode responsabilizar Kant por isso (EAGLETON, 1993, p.77).

A estética kantiana nos abre, assim, esta possibilidade extrema de comunicação humana: a intersubjetividade. E, se por um lado é possível situá-la em um horizonte excessivamente abstrato (ideal) ou utópico - por passar à margem da diversidade sócio-política-cultural concreta, factual (i.e., histórica) dos homens e mulheres; por outro, é quase impossível resistir ao caráter sedutoramente belo desta estética que nos “desvela que, se a existência de outros homens em torno de [nós] é contingente, a comunidade que nos une é outra coisa do que um dado de fato” (LEBRUN, 1993, p.496).





NOTAS:
[i] A sigla CJ que acompanha as citações corresponde a seguinte tradução da Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant, realizada por Valério Rohden e Antônio Marques (Critik der Urteilskraft, 2ª edição de 1793), Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1993.
[ii] O termo “estética” difere nas Críticas. A CJ analisa as condições de aprioridade da Faculdade do juízo estética e não as condições de aprioridade da Estética Transcendental (primeira crítica).
[iii]Conjunto Geral das Faculdades”: Crítica da Faculdade do Juízo - p.42 da edição consultada.
[iv] As idéias (transcendentes/metafísicas), nos diz Kant em relação às faculdades superiores do conhecimento (transcendentais), não são inúteis ou dispensáveis, mas servem como princípio regulativo (CJ Prólogo, p.12).
[v] O “idealismo dogmático” de Berkeley, p.ex., declara ser impossível a existência de objetos exteriores no espaço; isto porque fazendo do espaço uma propriedade das coisas em si, vê-se obrigado a concluir  por sua não-existência e, assim, pela não-existência das coisas (Crítica da Razão Pura, B, 274).
[vi] Não se deve interpretar com isso que Kant afirma ser o “fenômeno” uma mera aparência. Pois o “fenômeno” traduz o real para nós humanos, e nele pode conter tanto aquilo que se traduzirá por verdadeiro como aquilo que se mostrará como mera aparência.  Escreve o filósofo: “Quando digo que no espaço, e no tempo, tanto a intuição dos objetos exteriores como a intuição que o espírito tem de si próprio representam cada uma o seu objeto tal como ele afeta os nossos sentidos, ou seja, como aparece, isto não significa  que esses objetos sejam simples aparência” (Crítica da Razão Pura, B, 69).
[vii] Os textos dentro dos colchetes são comentários meus sobre o texto e não citações literais.
[viii]  Os textos entre os colchetes são comentários meus e não citações literais.
[ix] André Duarte, em comentário à citada obra de Hannah Arendt, escreve que, embora a autora “não afirme contextualmente, é perceptível que ela compreende o sensus comunnis kantiano tanto como condição da comunicação intersubjetiva, quanto como um sentido que se sente a si mesmo na ‘operação de reflexão’ que constitui o juízo. Para Hanna Arendt, o sensus comunnis tanto nos revelaria a destinação social e comunicativa dos homens como seria a expressão do prazer sentido na relação harmônica das faculdades da imaginação e do intelecto, que interagem na reflexão que constitui o ato de julgar” (ARENDT, 1992, p.129).
[x] Segundo Kant, encontra-se ligada à essência de nossa razão a necessidade de se pensar uma causa-primeira, geradora de toda condicionalidade, porém, ela mesma incondicionada; de pensar esta causa como foco gerador da absoluta totalidade das séries causais, de pensar uma inteligência suprema (a Onisciência) como causa absolutamente única do Universo; de pensar a comunidade das formas, tal como um organismo, segundo leis teleológicas, de pensar a finalidade absoluta, enfim, de pensar DEUS.  Escreve Kant: “O ideal do Ser Supremo, de acordo com estas considerações, não é mais que um princípio regulador da razão e que consiste em considerar toda a ligação no mundo como resultante de uma causa necessária e absolutamente suficiente, para sobre ela fundar a regra de uma unidade sistemática e necessária segundo leis gerais na explicação dessa ligação; não é, entretanto, a afirmação de uma existência necessária em si” (Crítica da Razão Pura, B, 647). Estas idéias regulam, entre outras coisas, o “fim último do homem”, que é (deve-ser) o fim moral (CJ §42, §89). Pois, se Mundo é uma Idéia que diz um Todo plenamente organizado e possuidor de um fim (finalidade), o homem, como parte integrante deste (hipotético) Todo, deve igualmente possuir um fim: “Temos razão suficientes para ajuizar o homem, não simplesmente enquanto ser da natureza como todos os seres organizados, mas também, aqui na terra, como o último fim da natureza, em relação ao qual todas as restantes coisas naturais constituem um sistema de fins, segundo princípios da razão. (....) Por outro lado é muito errôneo pensar que a natureza o tomou como ser preferido em detrimento de todos os outros animais” (CJ §83, grifo nosso). Se o homem não é o fim último como ser natural, i.e., como ser sensível, nem finalidade última como sujeito epistemológico, deve ser, no entanto, o fim último como ser de razão (moral). “O ser humano somente como ser moral pode ser um fim terminal da criação” (CJ §86). Este fim último (“fim terminal”) funciona só como balizador (um regulador).
[xi] Tanto que, para Kant, a insanidade, a “alienação mental”, se traduz pela perda do “senso comum”, que nos capacita a julgar e a comunicar. Ver, p.ex.: Antropologia, §53.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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EAGLETON, Terry - Particulares Livres e O Imaginário Kantiano. In: A Ideologia da Estética. Tradução: Mauro Sá Rego Costa (The Ideology of the Aesthetic, Basil Blackwell Ltd, Oxford, Inglaterra, 1990), Rio de Janeiro, Zahar, 1993.
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---------------------- - Crítica da Razão Pura.-Tradução: Manuel P. dos Santos e Alexandre F. Morujão (Kritik der reinen Vernunft), Lisboa, Portugal, Fundação Caloustre Gulbenkian, (2ª. edição) 1989.
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TÜRCKE, Cristoph - O Louco: Nietzsche e a Mania de Razão. Tradução: Antônio C. P. de Lima (Der tolle Mensch - Nietzsche und der Wahnsinn der Vernunft, Fischer Taschenbuch Verlag GmbH, Frankfurt, 1989), Rio de Janeiro, Vozes, 1993.

Postado por Imaculada Conceição Manhães Marins