A CRÍTICA DE HUME AO PROBLEMA EPISTEMOLÓGICO DA CAUSALIDADE
Imaculada Conceição Manhães Marins
A crítica de Hume ao
problema epistemológico da causalidade.
Com base em que argumentos o filósofo Hume sustenta que, por hábito, tendemos a transformar sucessão cronológica em conexão necessária?
Ao propor os domínios do
entendimento humano, o filósofo David Hume tem por pretensão desestabilizar as concepções
metafísicas de conhecimento. Para o
pensamento metafísico, a verdade se dá por adequação entre as Ideias do
intelecto e a realidade externa. As
ideias racionais são a priori e
contém verdades iluminadas pela luz divina (como, por exemplo, em Descartes).
Para Hume, as ideias não estão a priori, elas derivam das impressões
(sensíveis), sejam estas ideias simples (a ideia de um cavalo, por exemplo, ou de uma mulher)
sejam estas ideias complexas (a ideia do Pégaso”, que é a junção de duas
ideias simples: cavalo mais ser-alado, ou a ideia de Sereia, mulher mais peixe).
Todo conhecimento deriva
necessariamente das percepções sensíveis, que se dividem em percepções fortes - impressões diretas (por exemplo, se coloco a mão no fogo, logo se imprime em mim a
sensação do calor do fogo) ou percepções fracas - as Ideias (por exemplo, eu guardo a
ideia daquela impressão do calor do fogo, mas ela não é mais uma impressão
direta e, ao recordá-la, posso ter de volta tal sensação, mas não equivale ao
momento em que essa esteve impressa em
mim diretamente).
Se as ideias não são tidas mais como a priori, e agora encontram-se
totalmente subordinadas às impressões sensíveis, que conseqüência tem isso para
o conhecimento?
As consequências são que Hume será o responsável por derrubar todas as concepções metafísicas, tais como a de existência
independente (realidade substancializada), a de identidade, a de causalidade etc.
O primeiro elemento essencial para
o conhecimento da “realidade de fato” é, como mencionamos, as percepções
(impressões e idéias), o segundo elemento é como
trabalhamos (juntamos) essas percepções em nosso entendimento.
A maneira como conectamos impressões e ideias
é fruto do hábito e é através dele que concebemos os nexos causais, as
identidades das coisas e acreditamos em um mundo exterior.
O hábito é para nós uma espécie
de "instinto" e é ele que liga as percepções, de modo a inferirmos de um
acontecimento “A” uma conseqüência “B”, desde que esta tenha sido assim
experimentada por nós sucessivas vezes.
A prova de que o “nexo causal” se encontra no hábito e não em
intrincados processos racionais cognitivos é que tanto as crianças, quanto os
“rudes”, quanto os animais dele se apercebem. Um cão não se utiliza de nenhum raciocínio lógico para “inferir” as causas de um acontecimento. Se eu regularmente o machuco com uma barra de ferro, basta eu me apresentar com ela em punho frente a ele para ele temer ("inferir") as conseqüências. “Não há no mundo – diz Hume – isso que se chama acaso”; o que chamamos acaso deve-se à “nossa ignorância da verdadeira causa de uma ocorrência” oculta para nós.[1]
A causalidade não está nem na razão, nem na realidade exterior. O que percebemos daquilo que chamamos realidade exterior é que um fato sempre se sucede a outro, de modo que depois de repetidas sucessões similares, por hábito, acreditamos na necessidade desta causalidade. Mas não podemos falar de certeza, senão de probabilidades.[2]
A ciência trabalha com probabilidades maiores
ou menores. O que chamamos "leis da
natureza", por exemplo, não são necessárias, mas fruto de uma probabilidade
altamente favorável, com uma margem de erro (causalidade) ínfima. Por exemplo, ao levantar o lápis a um metro
do chão e depois soltá-lo espero (sei) que, pela “lei da gravidade” (lei que
não só experimento pessoalmente, como foi instituída por cientistas, homens de
pouca probabilidade de estarem mentindo), o lápis cairá. Mas não há “nenhuma contradição” para o
pensamento que ele não caia e flutue no ar. É pelo hábito que sei que a
infinita probabilidade é de que ele caia.
Acontece é que, nada impede que
as ditas “leis da natureza” (como a da gravidade terrestre) sejam tal como um
dado de um trilhão de faces, onde
somente uma foi marcada pelo nº zero e todas as outras pelo nº 1. Se dissermos que as faces de nº1 correspondem
a tal “lei” e a única face de nº zero corresponde a um ermo acaso, onde a lei
falharia aqui na Terra, então, no caso do exemplo acima, o lápis se manteria
suspenso no ar. E se durante toda a história
dos seres humanos sobre a Terra, caiu sempre um dos lados nº 1 (uma vez que a
probabilidade é um trilhão de vezes maior do que caia a única face nº
zero)? Então os humanos instituíram esta
lei como
necessária.
Para Hume, as probabilidades de que algum humano
tenha presenciado de fato um milagre (ou o que aqui chamamos a queda da única
face de n.º zero) é praticamente nula; visto que, por experiência, também já
ajuizamos os homens como tendendo para o “fantástico
e para o maravilhoso”.[3] De
tal modo que se algum homem diz ter presenciado tal “milagre” (a queda da face
n.º zero) é mais fácil acreditarmos que ele mente, nos engana ou auto se
engana. Como há de fato remédios que tornam possível a cura de algumas enfermidades, podemos concluir, por exemplo, diante de um charlatão (que saiba nos convencer e nos ludibriar de sua sinceridade) que ele tem a cura para nossos males.
Não se encontra em toda História nenhum milagre atestado por um número suficiente de homens de tão indisputado bom senso, educação e cultura que nos garantissem contra a hipótese de qualquer ilusão deles próprios; de tão reconhecida integridade que os colocasse acima de qualquer suspeita da intenção de iludir os outros; e de tal crédito e reputação aos olhos da humanidade que representasse grande perda para eles se apanhados numa mentira; e, ao mesmo tempo, atestando fatos ocorridos de maneira tão pública e numa parte tão conhecida do mundo que o desmascaramento se tornasse inevitável: circunstâncias essas que são todas indispensáveis para nos dar plena confiança no testemunho dos homens. [4]
As probabilidades
de que algum humano tenha presenciado a “queda” da face nº zero é praticamente
nula e, ainda, por experiência, também
já ajuizamos os homens como tendendo para o “fantástico e para o maravilhoso”,
de tal modo que se algum homem diz ter
presenciado este “milagre” (a queda da face nº zero) é mais fácil acreditarmos
que ele mente, nos engana ou auto se engana.
Por “milagre” Hume chama a quebra
do curso regular da natureza, tal como o exemplo que demos do lápis permanecer flutuando no ar, apesar das leis da gravidade terrestre.
David Hume define “milagre” como aquilo que ultrapassa (ou viola) as leis naturais
[5] - leis estas determinadas pelo hábito, não por necessidade: “Que são nossos princípios naturais, senão princípios de hábito?” - como diria Blaise Pascal (Pensamentos, Br. fr.92).
É mais do que provável que todos os homens deverão morrer; que o chumbo, por si mesmo, não pode ficar suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e é apagado pela água - a não ser porque sabemos que esses fatos são consentâneos com as leis da natureza e que é preciso uma violação dessas leis ou, em outras palavras, um milagre para impedi-lo. / Nenhuma coisa que tenha ocorrido alguma vez no curso ordinário da natureza é jamais considerada como um milagre. Não é milagre que um homem, que parece gozar de boa saúde, morra repentinamente: pois essa espécie de morte, conquanto mais rara que qualquer outra, tem sido observada muitas vezes. Mas seria um milagre que um morto voltasse à vida, porque isso jamais foi observado em qualquer época ou país.
Para Hume, não há nenhuma contradição pensarmos em sua probabilidade, o
que ele objeta é que tenha de fato ocorrido, em toda história do homem, isto que chamamos a “queda da única face nº zero do dado de um trilhão de
faces”. Pois, embora os testemunhos
humanos sejam de grande relevância, quanto aos ditos “milagres”, eles não tem valor algum. Hume os derruba um por um - visto não ter
encontrado em nenhum deles (nos testemunhos), a isenção científica necessária. É de extrema importância, para nós, humanos, levarmos em conta o que os homens dizem, pesquisam, conhecem, uma vez que isto reduz a necessidade de termos experiências diretas, pois usando a experiência dos outros humanos (os testemunhos respeitáveis de cientistas, por exemplo) podemos conhecer tais como se eles fossem nossos - ninguém precisa percorrer todos os caminhos da experiência científica cada vez que for criar algo de novo. Partimos das experiências precedentes para daí prosseguirmos.
É verdade que se Hume, desconfiando da veracidade dos testemunhos, descarta a possibilidade de já terem ocorrido, sob uma perspectiva científica, “milagres”, não os descarta sob a perspectiva da fé, que ele, tal como Blaise Pascal, reconhece não ser do domínio (ou da ordem) da razão.
Voltando à questão do combate da
ideia metafísica de “nexo causal”, Hume afirma que não podemos conhecer este
nexo como existente na realidade, pois que ele é fruto de um processo derivado
do hábito que temos em juntar um fato a outro.
Dado “A” que se sucede a “B”, depois de repetidas vezes, acreditamos que
“A” possui um nexo causal com “B”. Ou
melhor, inferimos que as probabilidades que tendo sido dado “A” logo se
sucederá “B” são praticamente certas.
"Causa" é para Hume apenas a sucessão repetida de um determinado fato a
outro. É pelas leis associativas, que nosso hábito engendra, que nós tiramos a
ideia de causalidade. As leis
associativas são as relações de semelhança, de contiguidade, de causalidade.
Por exemplo: de
semelhança: a relação entre a imagem de um retrato e da
pessoa que é “motivo”; de
contiguidade: a relação da “casa de botão” com
o botão da roupa; de
causalidade: a relação do fogo com a dor da
queimadura.
A imaginação e a memória são dois
elementos que ajudam nas junções das impressões e ideias, de tal modo que as
concepções não só de causalidade, como também de existência de um mundo
exterior e de identidade são formadas por elas.
É por instinto (hábito) que acreditamos em um mundo exterior
(substancial) e não pela sensação ou pela razão. Não é pela sensação, uma vez
que as impressões não permanecem o tempo todo impressa em nós. Porém, mesmo depois de cessada a impressão
não acreditamos que uma determinada realidade deixou de existir. Não é pela razão, porque até as crianças (que ainda estão em processo de formação), por
exemplo, acreditam em uma realidade exterior.
O mesmo acontece com a identidade, temos impressões fragmentadas de uma
realidade, mas a imaginação e a memória juntam estes fragmentos de impressão num
todo, numa identidade.
Quanto à ideia de
nexo causal, se dá o mesmo - não só não existe este nexo na realidade das
coisas (como exterioridade independente do sujeito que conhece), como não
depende da razão. Um homem (um ser
racional) que aparecesse neste mundo, de repente, sem nunca ter tido nenhuma
experiência sensível em relação a ele, não poderia inferir, penas com o uso de
seus raciocínios lógicos, que o fogo queima, por exemplo. Ele precisaria vivenciar repetidas
experiências similares para “conhecer” os nexos causais. Somente a experiência repetida engendra a
noção de causalidade.
[1] HUME, David. Investigação sobre o Entendimento Humano - An Enquiry Human Understanding - Col. “Os Pensadores”, SP, 1973: p.151.
[2] HUME, David. p.175.
[3] Sobre o pouco de confiança que devemos aos testemunhos dos homens pela “forte propensão da humanidade pelo extraordinário e o maravilhoso”; ou “a inclinação dos homens pelo maravilhoso”, ver: HUME, David: p.177-178.
[4] HUME, David. p.177.
[5] Segundo Hume: “Um milagre é uma violação das leis da natureza” (HUME, D. Investigação sobre o Entendimento Humano: p.176. Ver ainda, por exemplo: pp.145-146; pp.150-151).
[6] HUME, David: p.176.
[7] HUME, David: p.175-176.
Imaculada Conceição Manhães Marins