[Escrevi este texto há muitos anos... e o divulguei em alguma publicação acadêmica da qual não me recordo mais - e não vou agora procurar... (Re)publico-o aqui... Embora ele tenha essa cara de texto acadêmico, muito prazer me causou na época escrevê-lo... Sei que é uma publicação grande para um Blog, mas quem tiver paciência e se interessar pelo tema... taí... ]
A “ESTÉTICA” DE KANT
A COMUNIDADE NA INTERSUBJETIVIDADE
(Da Comunicabilidade Universal
Subjetiva do Juízo Estético)
Imaculada Conceição Manhães Marins
RESUMO: Só o caráter de
universalidade (que deve ser a priori) é capaz de dimensionar a comunicabilidade
entre todos os humanos (Humanidade). Graças à universalidade dos
conceitos é possível o conhecimento científico (e a comunicação deste saber).
Mas como fundamentar a comunicabilidade universal do juízo estético de gosto,
se esta não se encontra sob a legislação objetiva (universal) dos conceitos? E
mais, como não perder o caráter de singularidade (subjetividade), que
caracteriza toda experiência estética, e ao mesmo tempo requerer universalidade
do juízo estético? É em sua terceira Crítica que Kant refletirá
sobre tais questões, encontrando uma possibilidade de resposta na capacidade
humana de se socializar e comunicar-se.
PALAVRAS-CHAVES: Kant, experiência
estética, juízo reflexivo, comunicabilidade, humanidade.
Na Crítica da Razão Pura (A,
21/ B, 35), Kant designa por estética “uma ciência de todos os
princípios da sensibilidade a priori”, e, em nota de rodapé, ele faz
questão de distinguir seu uso (transcendental) deste termo pelo uso (que
virá a se tornar popular) entre alguns de seus contemporâneos, sobretudo
Baumgarten: “São os alemães os únicos que atualmente se servem da palavra estética
para designar o que os outros denominam crítica do gosto. Esta denominação tem
por fundamento uma esperança malograda do excelente analista Baumgarten, que
tentou submeter a princípios racionais o julgamento crítico do belo, elevando
as suas regras à dignidade de uma ciência. Mas esse esforço foi vão.” “Foi
vão”, pois é impossível, no entender de Kant, uma ciência do belo ou
do gosto (CJ §60)[i],
visto que seu objeto não está sujeito às regras do juízo determinante
(dos conceitos), mas às regras (indeterminadas) do juízo reflexivo
(estético) (CJ Intr.IV).
Se não podemos situar na dimensão do conhecer
(lógico-conceitual) a crítica do gosto, necessitamos, no entanto, de algum critério
de universalidade; caso contrário, jamais poderíamos ter a pretensão
de compartilhar nosso sentimento estético de gosto com outra(s)
pessoa(s), ou de discutirmos sobre. Só o caráter de universalidade (que
deve ser a priori) é capaz de dimensionar a comunicabilidade
entre todos os humanos (Humanidade). O caráter de universalidade dos
conceitos nos possibilita o conhecimento científico (e a comunicação deste
saber). Mas, como fundamentar a comunicabilidade universal do juízo estético
de gosto[ii], se esta não se
encontra sob a legislação objetiva dos conceitos? E mais, como não perder o
caráter de singularidade (subjetividade), que caracteriza toda
experiência estética, e ao mesmo tempo requerer universalidade do
juízo estético?
Todas as faculdades da alma, ou
capacidades do espírito humano, nos diz Kant, podem ser reduzidas a três:
faculdade de conhecimento (objetivo); sentimento de prazer e desprazer e
faculdade de apetição (CJ Intr. III). O propósito do projeto crítico pode,
então, ser definido como a busca pelas possibilidades gerais da razão
(ou “faculdades da alma”) no homem: i.e., como a razão intelectiva ou
especulativa, em acordo com os dados (intuições) sensíveis, determina nossa
realidade possível, os “fenômenos”, (re)processando-os em conhecimentos
lógico-racionais (a faculdade do Entendimento); como a razão destina o homem às
ações morais (Razão Prática); e como funciona nos sentimentos de prazer e
desprazer e no pensar reflexivo (Faculdade do Juízo). Para tanto, Kant, na Crítica
da Razão Pura, analisa a distinção entre razão pura e razão especulativa,
na Crítica da Razão Prática, analisa a razão considerada como princípio
de nossas ações morais e na Crítica da Faculdade do Juízo, analisa a
razão como fonte dos nossos juízos estéticos e teleológicos.
Podemos dizer que o grande achado de
Kant na primeira Crítica é a formulação da distinção entre razão
(pura) e entendimento (ou razão especulativa). O entendimento é uma
faculdade da Razão em geral e é a que nos possibilita o conhecimento objetivo
(que fundamenta objetivamente o real e, conseqüentemente, o saber científico).
A razão não se encontra relacionada diretamente a um objeto do conhecimento (ou
a um objeto da realidade possível: fenômenos); é somente por intermédio do
entendimento que ela opera no conhecer: organizando, conectando, ordenando,
totalizando, unificando etc. Trata-se de investigar quais as delimitações que
devemos impor à razão para não corrermos o risco de cairmos em paralogismos e
outros sofismas racionais, acreditando ser da dimensão da realidade possível
ao homem o que não passa de quimeras ou ilusões racionais (i.e., de uma aparência
dialética de um verdadeiro conhecimento, onde se toma os juízos sobre as
idéias como se fossem juízos sobre os objetos de uma experiência possível).
À razão (pura) caberá sobretudo uma função reguladora para as ações morais
e o pensar reflexivo. Portanto, assim, outro grande achado de sua
filosofia é uma mudança de perspectiva: a valorização do conhecimento sensível
(finito, humano) em relação a toda tradição filosófica ocidental, onde a
sensibilidade encontrava-se inferiorizada e subordinada ao inteligível.
Afirmava-se o sensível sempre a partir do inteligível (Deus: Logos, Infinito,
Absoluto), sendo o primeiro uma imperfeição (um ser-menor) em
relação ao segundo (O Ser). Kant, ao contrário, parte da afirmação da
condição limitada e sensível, que é necessariamente a consciência humana, para
só depois chegar a Deus (uma idéia necessária da razão). O
conhecimento sensível (humano) não é inferior ao de Deus, é o único conhecimento
possível a nós. O sensível é a marca distintiva de nossa condição humana, e o
conhecimento finito é a única dimensão possível de conhecimento para nós. Não é
mais em nome da figura divina de um Absoluto inteligível, de um entendimento
Infinito que se poderá relativizar o conhecimento sensível-racional e defini-lo
como um ser-menor, mas, ao contrário, é em nome da finitude insuperável
de nossas existências que a figura de Deus, do Absoluto, do Infinito será
relativizada à condição de uma simples idéia da razão (pensável,
mas não conhecível).
Na terceira Crítica, logo após
a introdução, o filósofo expõe em um quadro sistemático a organização do
conjunto de nossas faculdades.[iii]
Este quadro apresenta como relevante para as três Críticas a procura
pelos a priori das faculdades racionais de conhecimento superior.
Da faculdade cognitiva superior, onde o Entendimento (e suas categorias)
dá a priori as leis do conhecimento (“conformidade a leis”). Da
faculdade apetitiva superior, onde a Razão (prática) dá a priori
sua lei: o “dever-ser” moral (o “Fim último” a que a razão deve se destinar). E
do sentimento de prazer e desprazer, onde o Juízo dá a priori os
seus princípios (“conformidade a fins”). Por a priori Kant entende
aquilo que deve ter o caráter de necessidade e universalidade, i.e., uma lei
da razão que deve ser válida para todo ser racional.
O objetivo principal da primeira
parte da Crítica da Faculdade do Juízo, intitulada “Crítica da Faculdade
de Juízo Estética” (onde é analisada a faculdade racional capaz de ajuizar
esteticamente, i.e., capaz de realizar um julgamento de gosto que
postule algo belo), gira em torno de como os juízos estéticos (juízos
que dizem respeito a experiências singulares) podem ter validade a
priori, sendo assim universalmente válidos e, por conseguinte, universalmente
comunicáveis. O caráter de “universalidade” e “necessidade” são tomados,
em Kant, não no sentido ontológico (da tradição metafísica ocidental). O
ontológico adquire em sua filosofia um valor transcendental - e
não meramente transcendente, como para a concepção metafísica anterior ao
projeto crítico -, quer dizer, é algo que consta dos a priori da razão
pura e estabelece as condições universais de “existência” (CJ
Intr.V). Por exemplo, é transcendental o princípio de causalidade, como
conceito puro do entendimento, em relação à realidade fenomênica (a realidade
na perspectiva do sujeito humano), uma vez que, “as leis universais do
entendimento são ao mesmo tempo as leis da natureza” tomada enquanto o conjunto
dos fenômenos (CJ Intr.VI); e é transcendente (i.e., metafísico) se uma
causa for dada como “exterior” ao “fenômeno” (ou à representação) - a “causa” da “realidade ‘em si’ ”, ambas, no
entanto, fora do âmbito da experiência possível (CJ Intr. V). O transcendental
traduz aquilo que permeia as possibilidades da experiência. O transcendente
terá em Kant um sentido apenas regulador: são as idéias da razão (“úteis”
tanto à ação moral quanto ao pensar reflexivo).
[iv]
Kant não faz afirmações sobre a
natureza do “existente-em-si” ou da “realidade ‘em si’”, i.e.: a realidade
independente do sujeito que conhece, independente da perspectiva possível ao
homem. Todo real logicizável (i.e., passível de ser conhecido pelo entendimento)
é para Kant um real-construído (fenômenos) pela relação de nossa consciência
racional (o entendimento e suas categorias) com os dados sensíveis.
As categorias não são gêneros das coisas existentes, mas “conceitos
puros” do entendimento; e correspondem às formas lógicas.
Pelas categorias (formas do entendimento) e pelas formas da sensibilidade
(espaço/tempo) nossa “realidade” é enFORMAda. Substancialidade e causalidade, por exemplo,
pertencem ao nosso modo de “conhecer”, i.e., ao modo como o homem estrutura,
arquiteta sua realidade. Não se pode afirmar nada daquilo que, independente da
perspectiva (sensível-racional) humana, “é” ou “está-sendo” (por
isso Kant não afirma antinomias no Ser - as antinomias ontológicas da
tradição metafísica -, mas antinomias da razão). Pode-se apenas fazer
afirmações daquilo que é para a consciência racional do homem em
sua relação com o sensível: a realidade-fenomênica - a única
realidade acessível à razão cognoscente do homem. O “real” para além da perspectiva
sensível-racional humana (i.e., da “experiência possível”) é o que Kant
denomina “númeno”, aquilo que pode ser apenas cogitável. Kant assegura,
assim (contra os céticos e o idealismo dogmático[v]),
a existência de uma realidade externa à consciência do homem, ao mesmo tempo em
que afirma que o real que lhe cabe é um real exclusivamente construído por e
para ele[vi]
Se o mundo fenomênico é a realidade possível à mente cognoscente do
homem, o “mundo” numênico significa um X, o grande enigma que
escapa às possibilidades de nosso conhecimento e “experiência possível”: afinal
o que é a realidade para além da consciência racional do homem?; o que
são as “coisas em si” mesmas (no sentido metafísico ontológico - i.e., para
além dos fenômenos)?
O que denominamos razão é em
si uma estrutura vazia, uma forma pura sem conteúdos. E é essa estrutura (ou
“capacidade da alma”), e não os conteúdos (como acredita o racionalismo,
com suas idéias inatas), que é universal, a mesma para todos os seres
humanos. Essa estrutura não é adquirida através da experiência (como acredita o
empirismo), ela é, do ponto de vista da consciência cognoscente, aquela
que constrói a realidade (consciente) possível. A estrutura (capacidade) da
razão ou do espírito humano (e aí Kant inclui a sensibilidade
e suas formas - o espaço/tempo) é anterior (a priori) à
experiência, ou seja, não depende dela.
Dizer ser as categorias estruturas vazias - a priori, universal -
as mesmas para todos os seres racionais -, isso não significa afirmar que a
razão cria (efetivamente, como acreditam os idealistas dogmáticos) os
objetos da realidade, mas sim que os faz existir para nós, como fenômenos.
Se os empiristas enfatizam a experiência, dizendo ser a partir dos dados
fornecidos por esta que a razão se estrutura categorialmente, os
racionalistas dogmáticos dizem ser os conteúdos inatos na razão do
homem, independentes da experiência. Kant recusa essas concepções tomadas
isoladamente e tenta uma conexão entre elas, afirmando que a capacidade racional
da mente cognoscente (as formas do entendimento, as categorias, e as formas
da sensibilidade) é que é a priori, ainda que vazias de conteúdos (a
matéria, fornecida pela experiência, a ser enFORMAda).
Dizer Universalidade e Necessidade
são apenas Leis da razão significa que não sendo a universalidade
empírica (fundada somente nas sensações particulares e contingentes) nunca
rigorosa ou verdadeira a única universalidade verdadeiramente autêntica precisa
estar fundada sob as formas a priori do entendimento, i.e., sob
aquelas formas que participam na constituição dos objetos enquanto fenômenos.
Fenômenos são para Kant, como vimos, os objetos de toda experiência possível à
perspectiva (sensível-racional) do homem. A experiência puramente sensível (dos
empiristas) só pode dar origem a proposições contingentes, de modo que a razão
será a fonte única de proposições universais e absolutamente necessárias - sem
que com isso entendamos que a razão é “primeira” e funciona antes da
sensibilidade (como na concepção racionlista das “idéias-inatas”); pois razão/entendimento
e sensibilidade necessariamente se inter-relacionam no homem: ser
necessariamente sensível-racional. “O que Kant chama ‘a sensibilidade’
já é ela mesma uma faculdade permeada de espírito, observa Türcke. Mas, se isto
é irrecusável, então vale também o inverso: o espírito é uma faculdade
‘permeada de sensibilidade’, não apenas ‘um algo imperativo’ que sintetiza a
todo custo” (TÜRCKE, 1993, p.105).
A “razão-estética” kantiana
(Faculdade do Juízo Estética) abre espaço para a singularidade, dentro
deste “mundo construído” (pelas categorias do entendimento), porque indica uma
“faculdade-intermediária”. O entendimento, por seu caráter lógico, não nos
possibilita a radicalidade de experiências singulares, já que enquadra todo o
“real” em suas categorias. No entanto, quando algo (contingente) foge às regras
lógicas do entendimento, que com suas categorias prescreve à natureza Leis -
como causalidade, substancialidade, identidade etc. -, isso não significa que
esta contingência não possa ser indicadora de uma “lei”, que porém é (ainda)
desconhecida para a mente cognoscente (lógica) do homem (CJ Intr.
V). Assim, tudo o que o entendimento (lógico-racional) não pode “admitir”, tudo
o que escapa às suas regras e leis [como por ex.: a singularidade irredutível a
conceitos, i.e., o inefável -; o imprevisível, i.e., o acaso -; a
complexidade do múltiplo ou o confuso, i.e., o caos -, etc.] é, a nosso
ver, uma experiência possível no âmbito da faculdade do juízo
estética. Pois é contingente que o “real” corresponda ou não aos
imperativos da racionalidade lógica. Ou melhor falando: não é um imperativo que
a realidade (para o homem) sempre se enquadre nas formas lógicas do
entendimento. Daí o motivo pelo qual, diz Kant, “nos regozijamos quando de uma
experiência estética”, “no fundo porque nos libertamos de uma necessidade [que
os juízos determinantes impõem], como se fosse um acaso favorável às nossas
intenções, quando encontramos uma tal unidade sistemática sob simples leis
empíricas [contingentes], ainda que tenhamos necessariamente que admitir que
uma tal necessidade existe, sem que contudo a possamos descortinar e demonstrar
[como poderíamos caso se tratasse de uma experiência logicizável, uma
experiência redutível às categorias lógicas do entendimento]” (CJ Intr.
V)[vii].
Aqui, partimos do pressuposto de que as “leis da experiência possível em
geral” servem tanto para as experiências relacionadas a uma realidade logicizável
(categorizada e enformada pelo entendimento), quanto para nossas experiências não-logicizáveis
(estéticas) - estas últimas, no entanto, não podem se edificar como um saber
científico - , salvaguardando assim as experiências não-logicizáveis
de uma inevitável interpretação metafísico-ontológica, a saber, a crença de que
podemos, de algum modo, transpor a experiência possível ao homem.
Para nossas experiências singulares
(as estudadas na terceira Crítica são: a complacência no belo e o
êxtase do sublime - este último, porém, não abordaremos aqui -) Kant irá
buscar um a priori, i.e., algo que possa ser dado como um universal.
Este universal, não podendo ser objetivo (ligado a conceitos), e nem empírico
(fundado nas sensações ou nos objetos dados empiricamente), deve ser subjetivo,
porém não “particular”, mas de uma subjetividade universal; que
ele encontrará nas condições inerentes ao funcionamento estrutural de nossas
faculdades: uma capacidade que Kant pressupõe comum a toda a
humanidade - enquanto pertencentes à comunidade de seres racionais.
A faculdade do gosto, como uma
faculdade do juízo estética, é aquela que experimenta a
complacência no belo. A definição de gosto aqui é de que ele é a própria
“faculdade de ajuizamento do belo. O que porém é requerido para denominar um
objeto belo tem que a análise dos juízos de gosto descobri-lo” (CJ
§1/nota). As expressões gosto e belo possuem na terceira
crítica um sentido singular, diverso do sentido habitual (e mesmo
pejorativo) que estas adquiriram. Belo não é uma qualidade do objeto ou
a sua essência. E nem pode ser tomado como uma idealidade, um modelo, no sentido
platônico. Gosto não é algo irredutivelmente particular e pessoal
(“psicológico”), que cada um tem o seu e “não se discute, pronto!”,
dificultando a comunicabilidade ou a partilha do sentimento estético mediante a
diversidade dos indivíduos e dos grupos humanos. Gosto é apenas a
faculdade que nos possibilita ajuizar algo belo; i.e., gosto é a capacidade
que tem o espírito humano de ajuizar esteticamente; e belo é uma
representação daquilo que objetiva esta capacidade de nossas mentes
racionais. Belo é, assim, o “objeto” deste ajuizamento, mas somente na
medida de sua representação formal, descompromissada de qualquer
objetivo (conceitos), e igualmente independente do objeto tomado empiricamente.
Desse modo, não é absolutamente
pretensão da estética kantiana estabelecer uma doutrina do gosto, com a
indicação de um modelo de “Belo-Ideal”: um “gosto-ideal” imputado a
priori pela razão. Pois, embora Kant ao analisar o juízo estético de gosto
pretenda dar a este um caráter de universalidade (“gosto é a faculdade
de ajuizamento daquilo que torna nosso sentimento universalmente comunicável” -
CJ §40), não pretende, contudo, eliminar a singularidade da experiência
estética, não pretende tornar o julgamento prescritivo e nem o gosto canônico;
visto que, “a universalidade de um juízo de gosto é somente subjetiva”
(CJ §8). Temos aqui uma antinomia do gosto: como é possível
um juízo singular aspirar a uma necessária universalidade,
permanecendo esta universalidade, ao mesmo tempo, apenas subjetiva?
[antinomia que Kant nos §§55-57 da Crítica da Faculdade do Juízo buscará
resolvê-la - voltaremos a este ponto].
Uma das primeiras condições que Kant
impõe ao juízo estético, para diferenciá-lo de um mero “gosto pessoal”
(que ele chama “psicológico”, por não poder exigir universalidade), ou ainda,
para diferenciá-lo de um juízo de conhecimento (lógico), é a de que “a
complacência que o determina deve ser isenta de todo o interesse” (CJ
§2). O gosto estético “é inteiramente livre com respeito à complacência que ele
(o sujeito) dedica ao objeto; assim ele não pode descobrir nenhuma condição
privada como fundamento da complacência à qual unicamente seu sujeito se
afeiçoasse, e por isso tem que considerá-lo como fundado naquilo que ele também
pode pressupor em todo o outro” (CJ §6 - grifo nosso). Por complacência
interessada, Kant entende o que possui um fim ou um objetivo determinado a
que se destina. O belo é desinteressado, equivale a dizer: o processo
de ajuizamento que determina algo belo possui uma “finalidade sem fim”.
Assim: “nem uma amenidade que acompanha a representação nem a representação da
perfeição do objeto e o conceito de bom” podem conter o fundamento de
determinação do belo. “Logo, nenhuma
outra coisa senão a conformidade a fins subjetiva, na representação de um
objeto sem qualquer fim (objetivo -conformidade a conceitos, ou subjetivo -
‘psicológico’), conseqüentemente a simples forma da conformidade a fins na
representação” é que vale de fundamento em um juízo de gosto (CJ §11).
O belo supõe uma finalidade
sem a idéia de fim, i.e., o sentimento de prazer no belo é a
complacência ao se apreciar a simples forma, sem associá-la a seu
conceito (fim); tratando-se, portanto, apenas de uma finalidade formal
subjetiva. Não é preciso conhecer o
“fim”, pois a simples forma, sem conhecimento do fim a que se destina, apraz
por si própria no ajuizamento (CJ §48). Beleza é, portanto, a forma da conformidade
a fins de um objeto, na medida em que ela é percebida nele sem
representação de um fim. Fim é o conceito - enquanto fundamento - de um
objeto, i.e., na medida em que este conceito é tomado como causa do objeto em
questão. Finalidade é a própria causalidade de um conceito em relação a
um objeto. Conformidade a fins é o acordo do “objeto” com sua
constituição (sua forma). Porém, a “conformidade a fins” pode ser “sem fim”, como ocorre no
ajuizamento estético (CJ Intr.IV e §10). “Finalidade sem fim” é
aquela que não está sob a legislação de um conceito (determinante), e onde a
representação não se refere ao objeto (conceitual ou empírico), mas unicamente
“à representação formal do objeto” no sujeito. Aqui a conformidade (ou
concordância) da representação do objeto com nossas faculdades cognitivas é
apenas formal, visto não comportar nenhum fim determinado (objetivo ou subjetivo)
a que o sujeito pudesse encontrar no objeto. Na experiência estética, o fundamento
do prazer é colocado somente na forma (universal em todo sujeito
cognoscente) do objeto e em nenhuma sensação empírica. Portanto, é possível
afirmar a universalidade do juízo estético tomando como base especialmente
estas “condições de reflexão”, que são válidas a priori
universalmente (CJ Intr. VII). “O fundamento para este prazer
[estético], escreve Kant, se encontra na condição universal, ainda que
subjetiva, dos juízos reflexivos, ou seja, na concordância conforme fins de um
objeto (seja produto da natureza ou da arte) com a relação das faculdades do
conhecimento entre si” (CJ Intr. VII). E como esta complacência estética
é julgada como estando necessariamente ligada à representação - “formal” - [e forma
é uma estrutura a priori em todo sujeito racional/sensível], por
conseguinte, [deve-se pressupor válida] não simplesmente para o sujeito que
apreende esta forma [tida como bela], mas sim para todo aquele que julga em geral
(CJ Intr. VII). [viii]
A pretensão kantiana com a afirmação
de “independência de interesse” é, ainda, a de estabelecer uma distinção
entre a complacência estritamente estética e as outras esferas de “prazeres”: o
prazer exclusivamente sensível (orgânico, físico-animal), o “prazer” moral e o
“prazer” intelectual. Para Kant o juízo estético é um processo de nossa mente racional,
embora envolvendo plenamente nossas capacidades sensíveis. Na tentativa
de diferenciar tal complacência (que é “desinteressada” e não objetiva nenhum
fim - mas, frisemos bem: desinteressada apenas em seu processo sensível/mental,
não empírico ou factual -) de todos os outros “interesses”, tanto os que têm
por causa ou fim nossa razão (o conhecimento e/ou a ação-moral)
quanto os exclusivos de nossas experiências sensoriais (o “agradável”, a
“amenidade” sensível ou o “gozo-patológico”), é que ele enfatiza o caráter
“desinteressado” desta. O agradável, o inteligível, o bom ou o bem moral podem
nos oferecer uma satisfação, mas será sempre uma satisfação “interessada”,
portanto, não-estética. A única complacência desinteressada e livre é a
complacência no belo “pois nenhum interesse, quer dos sentidos quer da razão
arranca aplausos” (CJ §5); ou seja, é a única complacência que sentimos
sem sermos coagidos a isso nem por nossas “inclinações” de natureza animal e
sensível (físico-orgânica) e nem por nossa natureza moral e racional. A
complacência no belo é desinteressada pois não se explica por nenhuma
“conformidade a fins” objetiva ou subjetiva e nem por nenhum gozo físico “patologicamente
condicionado”.
Uma observação. Em Kant,
patológico designa o que constitui a faculdade inferior de desejar (CJ§12),
i.e., as inclinações naturais humanas, condicionadas pelas leis da Natureza
(heteronomia), ou seja, independentes da autonomia (“liberdade”) do
sujeito da razão/moral. Para ele somente
a “razão-prática” (moral = ao fim último a que a existência humana se destina -
CJ §42, § 86) é isenta de todas as inclinações sensíveis, constituindo,
assim, a “faculdade de desejar superior.” Desse modo, escreve Terry Eagleton,
“o desvio de Kant em direção ao sujeito não é de nenhum modo um desvio para o
corpo, cujas necessidades e desejos transbordam o desinteresse do gosto
estético. O corpo não pode ser figurado ou representado dentro da moldura da
estética kantiana; e a obra de Kant conduz, coerentemente a uma ética
formalista, uma teoria abstrata dos direitos políticos, e a uma estética
‘subjetiva’, mas não-sensualista.” (EAGLETON, 1993, p.22)
A faculdade de conhecer
(objetivamente), o entendimento, subsume os fenômenos à legislação determinante
de seus conceitos, categorizando as leis da Natureza. A faculdade de desejar, a
razão prática, persegue uma finalidade última e tem como domínio a liberdade.
A “razão-estética”, a Faculdade do juízo, é uma razão mediadora que, por
sua capacidade de conexão (reflexiva), torna compatível
legislações tão opostas, quanto as da Natureza (determinismo) e da
liberdade (autonomia do sujeito moral). “Na família das faculdades de
conhecimento, escreve Kant, existe ainda um termo médio entre o entendimento e
a razão. Este é a faculdade do juízo” (CJ Intr. III). Esta faculdade (conectiva)
é específica dos seres racionais/sensíveis. A capacidade de ajuizar
esteticamente o belo trata-se de algo que só tem particularmente
validade para o homem, este ser-intermediário entre o puro-racional e
moral e o extremo-sensível (animal). Os pássaros, por exemplo, são capazes de
sentir prazer (um prazer meramente sensorial: físico-orgânico) com o canto de
seus companheiros, mas somente o homem é capaz de sentir um prazer estético,
i.e., de ajuizar esteticamente belo, tanto o canto dos pássaros, como
uma bela sinfonia. O ajuizamento estético é o que torna possível a passagem
entre a sensibilidade e a razão: entre nossa condição originária animal e nosso
destino racional-moral: é o juízo de gosto que realiza a passagem do gozo dos
sentidos ao sentimento moral (CJ §41). “Amenidade vale também para
animais irracionais; escreve Kant, beleza somente para os homens, i.e., entes
animais mas contudo racionais, mas também não meramente enquanto tais (por
exemplo, espíritos), porém ao mesmo tempo enquanto animais; o bom, porém, vale
para todo o ente racional em geral” (CJ §5). Ou, como enfatiza Hannah
Arendt: “A mais decisiva diferença entre a Critica da razão prática e a Crítica
da faculdade do juízo é que as leis da primeira são válidas para todos os
seres inteligíveis, enquanto as regras da segunda são estritamente limitadas
aos seres humanos na Terra” (ARENDT, 1992, p.21). A complacência no belo diz
respeito somente ao homem, ao colocar em ação sua sensibilidade, seus
sentimentos e sua razão. Apenas o homem pode vivenciar uma experiência
propriamente estética e assim realizar um juízo de gosto. Assim, a faculdade do
juízo pertence exclusivamente à razão humana, e não à razão em geral.
Kant define juízo como a faculdade de pensar que
permite relacionar o particular com o geral, instaurando, na terceira Crítica,
a distinção entre juízos determinantes e reflexivos (CJ
Intr. IV). O juízo é determinante quando é dado o geral (a regra, o princípio,
a lei) e nele subsume o particular (o
singular); e é reflexivo quando é dado o particular para se buscar o geral do
qual ele está subordinado. O particular, nesse caso, torna-se o exemplo
que precede a lei (a regra) e permite descobri-la. O juízo reflexivo não
determina um “conhecimento” (no sentido lógico-conceitual das categorias do
entendimento), e a regra que inventa só é válida para ele. A faculdade
reflexiva, portanto, dá uma lei que é válida somente a si mesma e não para
Natureza, - esta segue as “leis universais” que tem seu fundamento no nosso
entendimento (CJ Intr. IV). A faculdade do juízo estética de gosto faz,
assim, “um curto-circuito conceitual ao ligar particulares concretos na sua
imediatez a uma espécie de lei universal, uma lei que de nenhum modo pode ser
formulada”, observa Eagleton. “Na estética, diferentemente das regiões da razão
pura e da razão prática, o individual não é abstraído ao universal, mas é de
algum modo elevado ao universal mantendo a sua particularidade [subjetividade
universal]” (EAGLETON, 1993, p.73).
O julgamento estético, ao pretender
valer para todos, devido a seu caráter de universalidade, tem uma pretensão
similar ao do conhecimento (i.e., “como se” fosse um). No juízo
estético, escreve Kant, (CJ §6) julga-se como se a beleza
pertencesse ao objeto (fosse uma qualidade essencial deste) e reivindica-se
universalidade como se o juízo de gosto fosse um juízo de conhecimento
(um juízo-lógico-conceitual). O juízo de gosto “é semelhante ao juízo
lógico no fato de que ele afirma uma universalidade e necessidade, mas não
segundo conceitos do objeto, conseqüentemente, apenas subjetiva” (CJ
§35). O conhecimento objetivo é o que exige uma universalidade a realizar-se
por (e sob a determinação de) conceitos. Já o juízo estético de gosto é o que
se dá imediatamente, sem mediação de conceitos. Gosto, diz
Kant, é a “faculdade de ajuizamento daquilo que torna nosso sentimento
universalmente comunicável em uma representação dada sem mediação de um
conceito” (CJ §40), ou “belo é o que é representado sem conceitos como
objeto de uma complacência universal” (CJ §6). Desse modo, embora se
assemelhe, o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (caso fosse,
estaria sob a legislação determinante dos conceitos), “por conseguinte não é
lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de
determinação não pode ser senão subjetivo” (CJ §1).
Kant tem por preocupação central (não
propriamente os juízos, já efetivados sob sua forma gramatical, mas) a faculdade
capaz de realizar julgamentos (juízos) estéticos de gosto. Esta
faculdade, por não estar sob a legislação determinante de conceitos, encontra,
inevitavelmente, dificuldades quanto a seus enunciados lógicos. A forma
gramatical dos juízos estéticos, nos diz Terry Eagleton, é, em Kant, de fato
ambígua e enganadora. Em proposições como “esta flor é bela”, os adjetivos
parecem ser predicativos, mas isto é ilusório: essas proposições têm a forma
lógica, mas não seu conteúdo e sentido. “A gramaticalidade desses enunciados
está em conflito com o seu verdadeiro estatuto lógico” (EAGLETON, 1993, p.72).
Os enunciados que traduzem os juízos estéticos parecem ser descrições do mundo,
mas são na verdade declarações do que ocorre no interior do sujeito: dizem
as relações descompromissadas de nossas faculdades cognitivas.
É um juízo de conhecimento se
enunciamos, por exemplo: “a água ferve a 100 graus”. Trata-se de uma regra
geral, que pode ser experimentada, ter comprovação objetiva e ser comunicada
universalmente por conceitos lógicos. Espera-se que a água infalivelmente ferva
ao alcançar 100 graus, independente do estado de espírito do sujeito que
presencia a experiência. Do mesmo modo, todo sujeito racional deve aceitar este
juízo. Ao contrário do exemplo anterior, não podemos enunciar “este girassol é
belo” e exigir uma comprovação objetiva, pois a beleza não se encontra no
objeto (o girassol), não é essência e nem uma qualidade deste. No entanto, deve-se exigir uma universalidade
de um juízo estético, porém, uma universalidade não objetiva (conceitual), pois
se assim procedêssemos teríamos de admitir ser a beleza a essência ou uma
qualidade necessária do objeto (enquanto objeto cognoscível). Portanto, essa
universalidade é apenas subjetiva (embora não particular, exclusiva de um
sujeito específico); ou seja, é algo que pertence a todo o sujeito da
experiência estética. Visto que, o sujeito kantiano não é nem o psicológico ou
uma subjetividade pessoal (esta ou aquela pessoa, este ou aquele grupo), mas o
sujeito universal: o Sujeito Transcendental - uma estrutura (ou capacidade) a
priori da razão humana.
Afirmar não haver um juízo
lógico-conceitual de gosto, equivale a dizer não ser possível provar,
nem objetiva nem conceitualmente, que algo seja belo: o belo (enquanto experiência
estética) não é conceituável. Para Kant, é impossível um princípio objetivo
de gosto estético puro (CJ §34), pois nenhum argumento objetivo
pode nos convencer de que algo seja belo. Assim como também nada da realidade
empírica, nem ninguém, enquanto sujeito empírico, pode estabelecer o que seja
um princípio norteador de gosto (puro). Se enunciarmos: “girassóis são belos”,
temos apenas uma proposição conceitual [embora sem fundamento, configurando,
portanto, uma proposição insustentável; visto que, girassóis não são belos para
todos, e nem todos os girassóis são belos] e não um enunciado que equivalha
a um juízo estético de gosto, por ter seu fundamento neste. Em “este
girassol é belo” temos também um juízo
lógico, porém fundado em um juízo de gosto. Este tipo de juízo é aquele
que nos possibilita enunciar
factualmente (dentro da realidade
social) o belo. Não se trata de um juízo
propriamente estético (puro), uma vez que este não pode ser pronunciado
conceitualmente, pois ao enunciarmos (i.e., ao “logicizarmos”) ele deixa
de ser um juízo estético (subjetivo) e passa a ser um juízo de caráter lógico
(mesmo que tomando por base o ajuizamento estético), ou então, um juízo
empírico.
Quando alguém diz, a respeito de algo
que lhe apraz, por exemplo, do colorido de uma flor: “gosto do amarelo deste girassol”,
esta pessoa não profere nenhum juízo estético de gosto (puro), pois se prende a
uma sensação: a simples percepção desta cor por um órgão dos sentidos. Não se
pode pretender que seja um juízo universal (válido para todos os homens)
- aqui há apenas um juízo de gosto empírico: um juízo particular e
pessoal. Pois pode ocorrer que um outro
perceba a cor, da flor em questão, de maneira diversa; que este outro seja daltônico,
por exemplo, ou ainda, que ele seja cego de nascença, jamais tendo visto uma
cor. Ou ainda, pode-se duvidar que todos
os homens percebam as cores do mesmo modo, pois embora possuindo o mesmo
mecanismo visual (órgãos), estes podem diferir quanto às suas potencialidades.
O mesmo se daria, p.ex., quanto a um som. Se alguém afirma: “gosto desta
música, ela me apraz”, não pode desejar que este seja um juízo
universalmente válido para todo e qualquer homem. Pois pode ocorrer de um
outro não ter a mesma acuidade auditiva deste sujeito (particular) que assim
julga; outro ser de uma cultura diversa deste e, portanto, tal som lhe soe
estranho, disforme, incômodo; ou ainda um outro seja completamente surdo de
nascimento, sem nunca ter ouvido um som em sua vida. E assim poderíamos
prosseguir com uma infinidade de exemplos, com gostos que provém
primordialmente dos sentidos físicos (a dimensão do sensível) e não do “sentimento”
(que é a dimensão do sensível-racional, da reflexão). Agora, se alguém
ajuíza “esta flor é bela”, tal fórmula impõe uma universalidade, de modo
que um outro (empírico) pode até discordar quanto à beleza da flor em
questão – “esta” determinada flor -, mas não pode discordar deste
sujeito que ajuíza tal flor bela. O sentimento do belo está tanto
nele quanto em qualquer outro sujeito (sensível-racional: homem). E embora um
outro possa discordar empiricamente ou ainda objetivamente (conceitualmente),
ele deve concordar subjetivamente (em uma dimensão transcendental, onde
o EU e o OUTRO se comungam no movimento de uma mesma reflexão, i.e., participam
a mesma comunidade humana), pois ambos devem possuir a capacidade
de ajuizar algo belo. Embora cego, assim podemos interpretar, ele deve
concordar, no ajuizamento do belo, com um outro que enxerga,
mesmo que seja um julgamento quanto ao visível; embora surdo ele deve concordar
com um outro que ouve, mesmo que diga respeito à sonoridade. Não é necessário
um acordo na dimensão da experiência empírica, ou um acordo conquistado
através de argumentos lógicos, para que alguém, alguma vez já tendo ajuizado
algo belo, reconheça a validade universal de seu juízo. Assim, se
é possível a um surdo de nascença concordar num juízo a propósito de uma
sonoridade (que ele nunca experimentou) é porque já ajuizou algo belo em outras
dimensões de sua sensibilidade (em concordância com o livre jogo de suas
faculdades).
O juízo de gosto, tomando a
singularidade de um particular busca o universal. Mas com a peculiaridade de
que este universal não é, como no entendimento, um conceito, ou uma lei lógica.
Este universal, no caso do ajuizamento estético de gosto, é,
paradoxalmente, a “complacência de cada um”, ou melhor, a simples possibilidade
de “validade universal” desta complacência.
Escreve Kant: “assim como o ajuizamento de um objeto em vista de um
conhecimento em geral tem regras universais - também a complacência de cada
um pode ser proclamada como regra universal para todos” (CJ
§31 - grifo nosso). De modo que, o que
se apresenta como válido “para qualquer um”, “não é o prazer, mas a validade
universal deste prazer (...) que é representada a priori em um juízo
de gosto como regra universal” (CJ §37). Uma validade que se encontra
na simples capacidade que tem o espírito humano de ajuizar esteticamente (i.e.,
de relacionar um particular dado a sua forma, porém sem chegar a “completar”
esta subsunção conformando-o ao seu conceito), e de reconhecer em todo outro
(enquanto pertencente à Humanidade) esta mesma capacidade.
Não se deve nunca, diz Kant,
confundir um ajuizamento estético de gosto como, p.ex., “esta flor é bela”,
interpretando-o por “eu gosto desta flor”; pois os juízos estéticos, enquanto processo
sensível/racional, são, como vimos, puramente desinteressados e não tem
nada a ver com as inclinações ou desejos contingentes de alguém. O ajuizamento
do “belo” é apenas um “jogo” entre nossas faculdades racionais, que se dá a
partir de uma experiência sensível singular, sem visar, em seu processo, nenhum
objetivo, nenhum “interesse”, seja da ordem do conhecimento (conformidade aos
princípios objetivos/ conceituais), seja de ordem moral (o bem ou o bom), seja
de ordem física (amenidade sensível) ou de ordem sócio-histórico-cultural-etc.
Podemos até pronunciar juízos do tipo: “o amarelo deste girassol me é
(particularmente) agradável”; porém teremos aí apenas um “pseudo-juízo” de
gosto, e não um ajuizamento de “gosto puro” (i.e., estético), mas um juízo
fundado nos gostos dos sentidos (na amenidade-sensível). Entretanto, diz Kant, em
sociedade, para a cultura, o belo só interessa empiricamente
(CJ §41). “Foi suficientemente demonstrado, escreve o filósofo, que o
juízo de gosto, pelo qual algo é declarado belo, não tem de possuir como
fundamento determinante nenhum interesse. Mas disso não se segue que depois
que ele foi dado como juízo estético não se lhe possa ligar nenhum interesse.
Esta ligação, porém, sempre poderá ser somente indireta” (CJ §41). Tal
juízo, embora “fundado” no juízo de gosto, não é um juízo de gosto “puro”. Um
juízo é de “gosto-puro”, afirma Kant, “somente na medida em que nenhuma
complacência meramente empírica é misturada ao fundamento de determinação do
mesmo” (CJ §14). Por exemplo: quando ajuizamos “esta flor é bela”, não operamos
assim por associarmos sua beleza com o emprego útil que fazemos desta para
decorações (de festas, casamentos, funerais), ou por associarmos sua beleza à sua “utilidade
natural”, i.e., ao fato desta ser o “órgão reprodutor” dos vegetais; muito
embora, em nossa realidade empírica, possamos fazer a associação da beleza de
tal flor com suas respectivas utilidades e objetivos. Os juízos estéticos
“podem, assim como os teóricos (lógicos), ser divididos em empíricos e puros.
Os primeiros são os que afirmam uma amenidade ou desamenidade, os segundos os
que afirmam a beleza de um objeto ou do modo de representação do mesmo; aqueles
são juízos dos sentidos (juízos estéticos materiais), estes (enquanto formais),
unicamente autênticos juízos de gosto” (CJ §14 - grifo nosso);
visto que, estes últimos, dizem respeito exclusivamente aos processos
racionais/sensíveis (o ajuizamento) da faculdade de julgar.
Não é possível encontrar um princípio
objetivo de gosto que nos forneça o critério universal do belo: “não
pode haver nenhuma regra de gosto objetiva, que determine através de conceitos
o que seja belo. Pois todo juízo proveniente desta fonte [do gosto] é estético;
i.e., o sentimento do sujeito, e não o conceito de um objeto, é
seu fundamento determinante” (CJ §17 - grifo nosso). E é por isso que
não pode haver ciência do Belo em nenhum sentido (CJ §44, §60) -
como é pretensão das estéticas de cunho “racionalista” (entre outras), que
associam o belo a uma manifestação sensível da Verdade (ou do Bem
ou da Razão) - onde o “objeto estético” seria aquele capaz de desvelar a
Verdade (do Ser). Se o estético não é o cognitivo, possui, entretanto, “algo da
forma e da estrutura do racional; e ele assim nos une com toda a autoridade da
lei, mas num nível mais afetivo e intuitivo. O que nos reúne enquanto sujeitos
não é o conhecimento, porém uma inefável reciprocidade de sentimentos” (EAGLETON,
1993, p.59). O sentimento, no acontecer de uma experiência estética, não
é algo “sentimental” ou meramente “psicológico” (como na estética empirista),
mas o resultado do livre jogo (i.e., da “comunhão”) das
faculdades do entendimento e da imaginação.
São duas, como já frisamos, as fontes
que nos possibilitam o conhecimento: a sensibilidade e o entendimento.
Sensibilidade é a capacidade de receber representações pelo modo como nós
somos afetados pelos objetos. Entendimento é a faculdade de produzir conceitos,
ou seja, sua função é determinar e sintetizar em conceitos as intuições
sensíveis. O entendimento é a força ordenadora, sintética. A sensibilidade é
aquela que acolhe em si (receptividade) as sensações e representações não
conceituais e carentes de ordem e as oferece ao intelecto (entendimento) para
elaboração (esquematismo). Nesta elaboração entra em jogo a imaginação. No
conhecimento, a imaginação tem por função coordenar o múltiplo das sensações
para produzir uma imagem ou representação unitária (do objeto). Na terceira crítica,
a imaginação é definida como a faculdade intermediária que liga as
intuições da sensibilidade aos conceitos do entendimento (CJ Intr. VII).
A imaginação, quando agindo como ferramenta do juízo reflexivo, é a
capacidade de interligar, de conectar (faculdades, idéias e
saberes). Com o prazer estético, proveniente do juízo reflexivo, o homem
descobre um acordo meramente funcional da imaginação com o entendimento, num
jogo livre e harmônico que não está submetido a regra de um conceito. A
“liberdade da faculdade da imaginação”, escreve Kant, “consiste no fato de que
esta esquematiza sem conceitos, assim o juízo de gosto tem que assentar sobre
uma simples vivificação da imaginação (...) e do entendimento (...)
portanto sobre um sentimento” (CJ §35 - grifo nosso). Escreve
ainda: “A comunicabilidade universal subjetiva do modo de representação em um
juízo de gosto, visto que ela deve ocorrer sem pressupor um conceito
determinante, não pode ser outra coisa senão o estado de ânimo no jogo
livre da faculdade da imaginação e do entendimento” (CJ
§9 - grifo nosso). Assim, no estético, embora o jogo da imaginação não recorra
a nenhum conceito para regular sua organização, estrutura-se apesar de tudo como
se pudesse satisfazer por si mesmo às exigências de regras que são as do juízo
de conhecimento. Existe, então, um acordo simplesmente livre e contingente
entre a imaginação e o entendimento, acordo totalmente imprevisível e não
controlável (CJ Intr. VI e VII).
A capacidade imaginativa tem,
assim, duas funções: “livre jogo” (juízo estético) e acordo-esquematizante
(conhecimento/lógico). Todo conhecimento realiza-se através deste acordo entre
as faculdades cognitivas. No caso do juízo estético esse “acordo” não desemboca
no esquematismo, é apenas um “livre jogo” (o livre vaguear das
faculdades cognitivas), i.e., não tem por finalidade um conhecimento (objetivo
/ conceitual). Tal acordo entre nossas faculdades deve existir em todo o
homem e é a condição subjetiva do ato de conhecer (CJ §9). A comunhão
(o acordo) que possibilita este livre jogo Kant denomina “sentido comum” [Gemeinsinn,
algumas vezes traduzido por “senso comum” -; mas Kant utiliza também a
expressão Sensus communis (aestheticus e logicus) - (CJ §40)];
e é o que fundamenta (serve de “princípio subjetivo”) a universalidade do juízo
estético e, portanto, a sua comunicabilidade subjetiva universal. O
juízo de gosto, diz Kant “têm de possuir um princípio subjetivo, o qual
determine somente através de sentimento e não de conceitos, e contudo de
modo universalmente válido, o que apraz e desapraz. Um tal princípio, porém,
somente poderia ser considerado como um sentido comum” (CJ §20
-grifo nosso).
Alguns comentadores se dividem quanto
à interpretação do que venha a ser esse “sentido comum” (“senso comum”) na Crítica
do Juízo. Deleuze, por exemplo, enfatiza as relações entre as faculdades
que ocorre no interior do sujeito do conhecimento. As faculdades de
conhecimento superior, embora autônomas, mantém entre si “comunidade”, o dito,
“senso comum”; ou seja, Deleuze interpreta por este termo a análise kantiana
das relações mediáticas entre nossas
faculdades cognitivas. Diz ele: “o acordo livre entre as faculdades
define o que se pode chamar de senso comum” (DELEUZE,, 1976, p.35). Assim
também Lyotard: “Esse senso comum não é absolutamente falando um ‘sentido
externo’ (...), mas o ‘efeito resultante do livre jogo das faculdades de
conhecer’” (LYOTARD, 1993, p.24 e p.203). E de fato, escreve o filósofo:
“Somente sob a pressuposição de que exista um sentido comum (pelo qual,
porém, não entendemos nenhum sentido externo, mas o efeito decorrente do
jogo livre de nossas faculdades do conhecimento), somente sob a pressuposição,
digo eu, de um tal sentido comum o juízo de gosto pode ser proferido” (CJ
§20 - grifo nosso). Hannah Arendt já prefere uma interpretação mais, como diz
Lyotard, “sociologizante ou antropologizante” (LYOTARD, 1993, p.24),
enfatizando tanto o jogo interno das faculdades, quanto o caráter
intersubjetivo e político-social da comunicabilidade do juízo estético[ix]. E realmente em Kant é possível encontrar base
favorável também a esta interpretação quando, por exemplo, ele escreve: “Por sensus
communis se tem que entender a idéia de um sentido comunitário,
i.e., de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração
em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro”
(CJ §40). Ou ainda, pelas palavras da própria Arendt: “(...) a faculdade
do juízo, como a faculdade do espírito humano para lidar com o particular; a
sociabilidade dos homens como condição de funcionamento daquela faculdade, ou
seja, o vislumbre de que os homens são dependentes de seus companheiros não
apenas porque têm corpo e necessidades físicas, mas precisamente por suas
faculdades do espírito” (ARENDT, 1992, p.22). Porém, convém salientarmos que “senso
comum” não equivale aqui ao termo em seu sentido “vulgar”; i.e., como tal
expressão é compreendida no linguajar corrente: como um apanhado de
preconceitos e opiniões que alcança uma certa unanimidade. Ou seja,
habitualmente “pelo termo comum (...) entende-se algo como vulgare,
o que se encontra por toda a parte e cuja posse absolutamente não é nenhum
mérito ou vantagem” (CJ §40).
Na interpretação de Luc Ferry (1994,
pp.115-162), a solução para a antinomia do gosto (a subjetividade universal
- que é o fundamento da comunicabilidade universal estética) encontra-se
na relação entre finitude (sensível/racional) e a idéia de sistema (uma idéia
da razão) - uma relação possível graças aos juízos teleológicos. O
juízo estético “se baseia na presença de um objeto que, se é belo (...),
desperta uma idéia necessária da razão que é, enquanto tal, comum à
humanidade.” (FERRY, 1994, p.130) A existência do objeto belo, no entanto
(diferentemente de um objeto de conhecimento), é contingente em relação
às idéias. É do acordo contingente entre o real particular e a exigência
universal de sistematicidade, organicidade, finalidade que nasce um prazer
estético, ao provocar, de modo livre e contingente, o acordo das faculdades.
O próprio Kant também torna possível
mais esta interpretação, quando nos §§ 55-57 indica a resolução para a antinomia
do gosto (estético). Tal antinomia, como já mencionamos, aponta para uma universalidade
não conceitual (não-determinada pelos conceitos puros do entendimento) e uma subjetividade
“sem sujeito” (não particular, individual, pessoal ou psicológica). O juízo de
gosto para ser universal deve fundar-se sob um conceito, mas como não pode ser
um conceito determinado (um conceito lógico fornecido pelo entendimento),
deve o juízo “ser guiado” pelo
“princípio subjetivo, ou seja, a idéia indeterminada do supra-sensível” (CJ
§57). A resolução da antinomia, diz o filósofo, nos coage a olhar para além do
sensível e a procurar no supra-sensível o ponto de convergência de todas nossa
faculdades a priori (CJ §57). É, portanto, a referência às idéias
(da razão) que irá permitir fundamentar o senso comum (tanto no sentido
da comunidade interna das faculdades, como no sentido de intersubjetividade).
São as idéias que desempenham
o papel de princípio para a “reflexão” estética. Idéias, como as
mencionadas na Segunda Parte da CJ, que trata dos juízos teleológicos:
idéia de sistema, de totalidade e finalidade, i.e., algo que nos ajuda a pensar
a Natureza como um todo coerente e sistemático, um todo
interconectado segundo fins (idéia de Mundo), trazendo-nos a idéia de
apreensão de conjunto (totalidade), organicidade (formal), com uma finalidade
implícita. Idéias que ajudam o homem a se pensar como parte desta “totalidade
orgânica” (Mundo/Natureza), tendendo a um fim (Fim Último/Deus/moral). Idéias
necessárias, mas nunca dadas na “intuição”, passíveis só de serem pensadas,
mas nunca conhecidas.[x]
O princípio teleológico é o principio
a priori (universal e necessário) do juízo reflexivo, é ele que
serve de fundamento (regulador) para o conhecimento da unidade sistemática das
formas e das ligações e conexões entre elementos diversos. O pensar
reflexivo ocorre graças à capacidade do espírito humano, com o auxílio da imaginação
e das idéias da razão, em conectar e interligar a diversidade das
“partes” (múltiplas perspectivas possíveis) em um (hipotético) Todo
sistemático, orgânico e tendendo a um (hipotético) Fim. Tal como se
nos encontrássemos em uma perspectiva superior (a perspectiva
de Deus), uma perspectiva panorâmica, a nos possibilitar uma visão
geral, assim nos possibilitando a compreensão das inter-relações e interconexões
entre os múltiplos elementos em questão (promovendo o objetivo final de todo
conhecimento - CJ Pról. p.12). “Na resolução de uma antinomia
trata-se da possibilidade de que duas proposições aparentemente contraditórias
entre si de fato não se contradigam, mas possam coexistir, mesmo que a
explicação da possibilidade de seu conceito ultrapasse a nossa faculdade de
conhecimento. E é igualmente compreensível que essa aparência [de contradição]
também seja natural e inevitável à razão humana” (CJ §57). Toda
contradição desaparece, no entanto, se afirmarmos que o juízo de gosto funda-se
sobre um conceito indeterminado e, portanto, inadequado para o conhecimento
(lógico), mas salutar para juízo estético. Só assim, através desse conceito
indeterminado, o juízo alcança validade para qualquer um (“em cada um é verdade
como juízo singular que acompanha
imediatamente a intuição” - CJ §57), porque “o seu princípio
talvez se situe no conceito daquilo que pode ser considerado como o substrato
supra-sensível da humanidade” (CJ §57).
Pode-se então interpretar que a noção
de senso comum e de intersubjetividade (a comunicabilidade
universal subjetiva) funciona como se fosse uma idéia da razão (assim
como as Idéias de Mundo e Deus nos possibilitam pensar a comunidade dos conteúdos
diversos na forma e as conexões e inter-relações entre
múltiplas perspectivas, idéias e saberes). E, muito embora não seja uma idéia
da razão, esta seria invocada simbolicamente - com um sentido “regulador” - como
se fosse um princípio moral: que leva em conta a humanidade no todo
-, sugerindo uma comunidade intersubjetiva de sujeitos humanos. De onde a importância da máxima do juízo
reflexivo, fundamentada pela faculdade de julgar, a “maneira de pensar
alargada”, ou seja, de pensar pondo-se no lugar de todos os outros [inter-relaciona-se
aqui universal e particulares]: “refletindo sobre o seu juízo
desde um ponto de vista universal (que ele somente pode determinar
enquanto se imagina no ponto de vista dos outros)” (CJ §40). Se a faculdade do juízo, em sua reflexão,
leva em conta o modo de representação de qualquer outro homem, é com o fim de
vincular o juízo particular do sujeito (e sua capacidade de ajuizar) como
pertencente à Humanidade em geral, e não somente como resultante de uma
subjetividade particular (“psicológica”).
Ao fundar a idéia de Humanidade,
as noções kantianas de universalidade e de validade universal,
não permanecem mais em uma dimensão meramente transcendental, pois adquirem um
significado pertencente à dimensão do político: a sociabilidade entre os
humanos. Uma comunidade humana intersubjetiva, que nos permitirá falar em uma sociabilidade
fundada sobre as possibilidades de comunicabilidade universal entre nós
humanos, devido ao senso comum de nossa razão. “Humanidade <Humanität>
significa de um lado o universal sentimento de participação e, de outro,
a faculdade de poder comunicar-se íntima e universalmente; estas duas
propriedades coligadas constituem a sociabilidade conveniente à humanidade <Menschheit>,
pela qual ela se distingue da limitação animal.” (CJ.§60).
Quanto às interpretações confrontadas
anteriormente (Deleuze, Lyotard e Arendt), uma leitura da terceira Crítica
nos possibilita acreditar que, em Kant, o termo “senso comum” tem ambos os
sentidos mencionados. No entanto, é preciso frisar que a interpretação aqui se
pautou em nossa língua (portuguesa), onde nos foi possível o jogo com a
palavra comum. Em alemão, no entanto, os termos citados: “sentido
comum” ou “senso comum” (GEMEINSINN) e “comunidade”
(GEMEINSCHAFT) não possuem a mesma formação de “comunicação”
ou “comunicabilidade” (MITTEILKBARKEIT), donde Mitte
= “meio” e não a “comum” (GEMEIND). Mas, a nosso ver, o sentido
permanece. E é assim que podemos dizer (em nossa língua) que a imprescindível comunhão
(o acordo) das faculdades racionais entre si, ou seja, o jogo harmônico da
imaginação e do entendimento, sem objetivar nenhum conhecimento
lógico-conceitual (i.e., sem estar sob a legislação de um conceito
determinante, mas a simples conformidade a fins - à forma), que ocorre no
interior do sujeito quando da experiência estética do belo, é algo “comum” a
toda “comunidade” dos homens. É algo que mantém “comunidade” com todo
sujeito-racional-sensível (o homem), possuindo, desse modo, a possibilidade de
ser “comunicado” universalmente, porém não através de conceitos (como no juízo
de conhecimento), mas apenas (inter)subjetivamente. Para haver acordo
(comunhão) entre as faculdades é preciso algo em comum: uma faculdade
intermediária. Assim também entre os homens: comunicação pressupõe algo em
comum, este “algo”, no ajuizamento estético do belo, é o “sentimento” (no
sentido kantiano); i.e., aquilo que resulta do livre jogo (da comunhão) entre
as faculdades cognitivas, e que constitui uma capacidade comum a todo sujeito
sensível/racional. No julgamento estético, escreve Eagleton, “estamos exercendo
uma forma valiosa de intersubjetividade, estabelecendo-nos como uma comunidade
de sujeitos sensíveis ligados por um sentimento de nossas capacidades
compartilhadas” (EAGLETON, 1993, p.59).
Estas “nossas capacidades
compartilhadas” não devem, contudo, ser confundidas com o fato de muitos
concordarem quanto a um determinado gosto no plano da realidade social
empírica, pois nesse caso temos apenas uma “unanimidade” (CJ §7) de
gostos e não um ajuizamento estético. A “unanimidade” é um “consenso empírico”,
possuindo uma falsa universalidade, pois depende de condições empíricas,
podendo, no máximo, oferecer regras gerais, mas não universais. Tanto as
estéticas de cunho racionalistas quanto as empiristas não conseguem indicar uma
verdadeira intersubjetividade porque o sujeito da experiência estética
permanece uma “mônada” (cogito), fechada em si mesma e mantendo
uma relação apenas exterior com as outras mônadas. Estas concepções do sujeito
partem da interpretação do cogito sob uma perspectiva dogmática,
definindo a objetividade como uma exterioridade e a subjetividade
como a interioridade. No entanto, não há, em Kant, uma “coisa em si”
exterior ao sujeito, onde precisamos distinguir as que são válidas só para mim
(subjetivas) e as que são válidas universalmente (objetivas). A objetividade
não é exterior à representação realizada pelo sujeito, mas designa o
universalmente válido. É objetivo o que faz parte da esfera logicizável
do entendimento (aquilo que se tornará objeto do conhecimento científico) e é
subjetivo o que concerne ao estético (à esfera do não-logicizável).
Enquanto o racionalismo dogmático
busca uma universalidade fundamentada particularmente na razão, o empirismo busca
uma generalidade fundamentada empiricamente (um acordo resultante da simpatia,
entendida como o fato de se ter em comum o mesmo sentimento). Na estética
racionalista a singularidade própria daquele que profere um juízo de gosto
dissolve-se numa razão universal que se comporta de maneira dogmática para com
o particular. Esta postura “dogmática” da razão impõe uma logicidade ao
belo (Belo é aquilo que equivale à Verdade, permanecendo o sensível subordinado
à Razão). Na estética empirista, a singularidade dos sujeitos parece estar
preservada; porém, por se fundamentar no “psicológico”, i.e., em uma
subjetividade pessoal, empírica, o belo aqui permanece apenas uma variedade do
agradável e o “senso comum” é uma simples generalidade factual (o consenso
empírico, a unanimidade). No empirismo da crítica do
gosto, nos diz Kant (CJ §58), o fundamento de determinação do gosto é
empírico, i.e., só pode ser dado a posteriori pelos sentidos e, nesse
caso, “o objeto de nossa complacência não seria distinto do agradável”. Já o
racionalismo acredita que o princípio de determinação se “assenta em conceitos
determinados”, mas se assim fosse o juízo de gosto “não seria distinto do
bom”. Mas um “juízo de gosto não é
nenhum juízo de conhecimento e a beleza não é nenhuma qualidade do objeto,
assim o racionalismo do princípio de gosto jamais pode ser posto no fato de que nesse juízo a
conformidade a fins seja pensada como objetiva (...), i.e., que o juízo tenha a
ver (...) com a perfeição do objeto” (CJ §58). Contrariamente ao que
afirma o racionalismo, o juízo de gosto
não se fundamenta em conceitos (regras) determinados, portanto é impossível
“disputar” (argumentativamente) acerca dele, tal como nos seria possível caso
se tratasse de um juízo de conhecimento científico. No entanto, ele igualmente
não se limita a remeter à subjetividade empírica do sentimento. “É preciso,
então, escreve Luc Ferry, rejeitar tanto a simpatia [o consenso empírico]
quanto a razão dogmática quando se trata de refletir sobre as condições
transcendentais de possibilidade de um senso comum estético realmente
intersubjetivo: no racionalismo, assim como no empirismo, o fundamento do
‘senso comum’ não é, na verdade, um fundamento da intersubjetividade,
assimilada num caso por um universal impessoal e, no outro por uma estrutura
simplesmente material”. (FERRY, 1994, p.138)
A “unanimidade” não poderá nunca
exigir validade universal, como no caso do juízo estético de gosto, uma vez que
a validade universal do juízo de gosto, escreve Kant, “não deve fundar-se sobre
uma reunião de votos e uma coletânea de informações [na unanimidade] junto a
outros acerca de seu modo de ter sensações, mas deve assentar sobre uma
autonomia do sujeito que julga sobre o sentimento de prazer (na representação
dada), i.e., sobre o seu gosto próprio” (CJ §31). Podemos até concordar
a respeito, por exemplo, do que nos é prazeroso e agradável dentro de nossa
realidade social empírica, contudo, não podemos exigir universalidade disto,
que é apenas uma eventual unanimidade de nossas opiniões. Não é porque eu e
mais um grupo de pessoas gostamos de música barroca que devemos enunciar tal
fato como uma lei universal. Até porque este julgamento, por ser um julgamento
empírico de gosto, está centrado numa sensação (pessoal ou grupal) ocasionada por
um objeto (aqui, uma determinada modalidade musical) e não no ajuizamento estético
propriamente, este sim universal. Na estética empirista, o senso comum continua
sendo uma simples generalidade factual, logo, somente particular, ligada às
particularidades psicológicas dos indivíduos (ou grupos) separadamente.
A comunicabilidade intersubjetiva,
possível graças à universal subjetividade do ajuizamento estético, vislumbra
assim, como diz Eagleton, “uma comunidade de sujeitos unidos a partir da
profundidade de seu próprio ser”, onde o sujeito transcende suas necessidades e
desejos, particulares e efêmeros, em nome da idéia de comunidade humana. “Os
juízos estéticos são assim ‘impessoalmente pessoais’, uma espécie de
subjetividade sem sujeito, ou como Kant o coloca, uma ‘subjetividade
universal’” (EAGLETON,1993, p.74 e p.72). Podemos até acreditar que, para Kant,
é possível a um “outro” (conquanto este “outro” seja também um sujeito-racional-sensível:
um humano), mesmo que pertencendo a uma cultura diferente, a uma classe social
diversa, a um outro sexo, ou sendo desprovido de alguma potencialidade física
(cego, surdo, mudo, etc.), partilhar conosco da complacência no
belo (muito embora esta complacência seja o seu gosto próprio - CJ §31).
Não partilhamos nossos gostos por sermos unânimes em nossas preferências
empíricas, mas porque compactuamos de um “mesmo” sentimento (resultante do
livre jogo de nossas faculdades) ao ajuizarmos (cada um singularmente) belo uma
forma dada (também em sua singularidade) no acontecer de uma experiência
estética.
Na estética kantiana, portanto, não
se trata da abolição da diferença, mas da articulação da diferença (o
particular) com a idéia de senso comum (o universal). O universal,
no ajuizamento estético, não entra em conflito com o particular, pois funda-se
- como ocorre na moralidade e no conhecimento objetivo -, num procedimento
(a priori) interno à própria razão. De modo que a singularidade de
um sujeito particular pode ser mantida como diferença (“seu próprio
gosto”, “o gosto de cada um”) e ao mesmo tempo requerer universalidade. Pois o
fundamento do prazer é colocado na forma do objeto e em nenhuma sensação
(CJ Intr.VII) - e forma é uma estrutura a priori no
sujeito de toda experiência - assim como nas “condições de reflexão”, que
operam na subsunção do juízo de gosto, e que são no sujeito de todo julgamento
válidas a priori (CJ Intr. VII) - ou seja, tem caráter de
universalidade.
Não se deve, no entanto, pensar o
“senso comum” kantiano (fundamento da comunicabilidade universal subjetiva) em
um horizonte totalmente ideal. É o “senso comum” que garante a comunicação
entre os homens, impedindo a total alteridade que ocorreria caso não se
supusesse nenhuma possibilidade de partilha, nada que fosse “em comum” para a
humanidade[xi]. O “senso comum”
demonstra a capacidade que têm os humanos em se comunicarem
(intersubjetividade). Para além da comunicação universal objetiva dos
conceitos, o “senso comum” traduz, não só o fundamento da comunicabilidade
universal subjetiva do estético, mas o próprio fundamento da
objetividade (i.e., sua possibilidade). É desta capacidade
(intersubjetiva) de comunicação que se vê justificada a possibilidade dos
homens em se comunicarem conceitualmente. Como escreve Lebrun: “(...) eu
subentendo sempre quando uso conceitos, que os outros têm o poder de entender-me,
pois sei que eles são meus semelhantes e que nós intuicionamos da mesma
maneira; portanto, posso até imputar-lhe esse poder como um dever. (...) agora
parece que os próprios conceitos objetivos, para serem entendidos, supõe antes
de tudo nossa pertença à mesma comunidade humana” (LEBRUN, 1993, p.495).
Caso o “senso comum” se reportasse apenas a uma idéia da razão, ou
apenas a um processo mental (o jogo das faculdades), não poderíamos, visto a
diversidade humana, admitir de modo algum comunicação “de fato”
entre os homens a respeito do gosto, pois este “senso comum” seria sempre
ideal, utópico. Caso fosse somente empírico, isento de qualquer universalidade
(como é a “unanimidade”), a diferença entre os homens (ou os grupos humanos)
seria tão acentuadamente radical, que não mais poderíamos pressupor nenhum acordo,
nenhuma comunicação de caráter universal (pois comunicar diz a
necessidade de algo em comum); e tal diversidade corromperia de vez a
idéia de “humanidade”, i.e., a possibilidade dos homens em se comunicarem
universalmente, apesar de toda a alteridade
(físico-histórica-cultural-linguística-etc.). Por outro lado se, quanto ao gosto,
os humanos basicamente só têm em comum o fundamento da comunicabilidade
isso não acaba colocando de fato a pretensão kantiana em uma dimensão ideal
?
Todos os homens têm as mesmas condições subjetivas
da faculdade de julgar: é algo que pertence à condição humana (CJ §9). E
“embora os críticos”, escreve Kant, “possam raciocinar mais plausivelmente do
que cozinheiros, possuem contudo [quanto ao ajuizamento estético] destino
idêntico a estes. Eles não podem esperar o fundamento de determinação de seu
juízo da força de argumentos, mas somente da reflexão sobre seu próprio estado
(de prazer e desprazer), com rejeição de todos os preceitos e regras” (CJ §34).
Porque somos humanos (seres sensíveis/racionais) temos as mesmas condições
para realizar um juízo estético de gosto que qualquer outro: um vizinho,
um estrangeiro, um esteta ou um leigo em arte.
[O que habitualmente “tem a
mais” um especialista em arte, como o das artes visuais, por exemplo, é
somente o seu conhecimento dos processos artísticos e da história da arte, além
de um certo condicionamento - para não dizer um certo “adestramento”: um olhar
adestrado! - que em nosso contemporâneo linguajar especializado se
traduz, pretensiosamente, por: “saber ver”. Não se deve interpretar com isso,
no entanto, que a Arte possuiria o mesmo nível de “entendimento” para qualquer
um. A Arte, ou a “obra-de-arte”, é algo já objetivado: uma cultura
tornada objeto-idéia-conceito. Já não está em jogo, portanto, apenas o ajuizamento
(um processo sensível /mental - subjetivo /universal) estético, mas toda uma
formação histórico-sócio-político-cultural-etc., que inevitavelmente divide os
grupos humanos no interior da realidade social empírica.]
Se Kant, em sua “Estética”, não tem
uma preocupação histórica e cultural com a arte ou o gosto artístico é porque,
mais do que a diversidade real do mundo, na dimensão da realidade social
empírica, a ele interessa (o que acredita ser) o que em comum e de mais digno
há em todos os homens: as faculdades racionais do espírito humano, as
faculdades capazes de estabelecer um a priori (um “universal”), tanto para
o conhecimento objetivo, quanto para a ação moral, quanto para o sentimento
estético. O próprio Kant é bastante consciente quanto às prováveis críticas
futuras a este respeito: “a investigação da faculdade do gosto, enquanto
faculdade de juízo estética, não é aqui empreendida para a formação e cultura
do gosto (pois esta seguirá adiante como até agora o seu caminho -...), mas
simplesmente com um propósito transcendental, assim me lisonjeio de pensar que
ela será também ajuizada com indulgência a respeito da insuficiência daquele
fim” (CJ Prólogo, p.14). O que o preocupa em um “julgamento de gosto” é
a análise de nossas faculdades racionais quando estão a “julgar” esteticamente;
i.e.: o próprio experienciar uma experiência estética. Por isto Kant se
detém na faculdade do juízo (interessando-se especialmente pelos processos
do ajuizamento), em vez de realizar uma mera crítica do gosto
(empírico). Sua filosofia até tem uma preocupação quanto à aplicação no mundo
social do uso compartilhado de nossas capacidades espirituais (como vimos na
análise do “senso comum”)... Porém, esta não requer dos homens uma boa
vontade para torná-la realizável? E quantos de fato se encontram
dispostos?
Contra uma filosofia
fundada no egoísmo e no apetite - escreve Eagleton - Kant defende uma generosa visão de
uma comunidade de fins, encontrando na liberdade e na autonomia do estético um
protótipo das possibilidades humanas contrário ao mesmo tempo ao absolutismo
feudal e ao individualismo possessivo. Se não há nenhum meio pelo qual este
ideal admirável de respeito mútuo, igualdade e compaixão possa chegar à
realidade material; se é necessário ensaiar na mente o que não pode ser
encenado no mundo, não se pode responsabilizar Kant por isso (EAGLETON, 1993,
p.77).
A estética kantiana nos abre,
assim, esta possibilidade extrema de comunicação humana: a
intersubjetividade. E, se por um lado é possível situá-la em um horizonte
excessivamente abstrato (ideal) ou utópico - por passar à margem da diversidade
sócio-política-cultural concreta, factual (i.e., histórica) dos homens e
mulheres; por outro, é quase impossível resistir ao caráter sedutoramente belo
desta estética que nos “desvela que, se a existência de outros homens em torno
de [nós] é contingente, a comunidade que nos une é outra coisa do que um dado
de fato” (LEBRUN, 1993, p.496).
NOTAS:
[i] A sigla CJ que
acompanha as citações corresponde a seguinte tradução da Crítica da
Faculdade do Juízo de Immanuel Kant, realizada por Valério Rohden e
Antônio Marques (Critik der Urteilskraft, 2ª edição de 1793), Rio de
Janeiro, Ed. Forense, 1993.
[ii] O termo “estética” difere
nas Críticas. A CJ analisa as condições de aprioridade da Faculdade
do juízo estética e não as condições de aprioridade da Estética
Transcendental (primeira crítica).
[iii] “Conjunto Geral das
Faculdades”: Crítica da Faculdade do Juízo - p.42 da edição
consultada.
[iv] As idéias (transcendentes/metafísicas),
nos diz Kant em relação às faculdades superiores do conhecimento
(transcendentais), não são inúteis ou dispensáveis, mas servem como princípio
regulativo (CJ Prólogo, p.12).
[v] O “idealismo dogmático” de
Berkeley, p.ex., declara ser impossível a existência de objetos exteriores no
espaço; isto porque fazendo do espaço uma propriedade das coisas em si, vê-se
obrigado a concluir por sua
não-existência e, assim, pela não-existência das coisas (Crítica da Razão
Pura, B, 274).
[vi] Não se deve interpretar
com isso que Kant afirma ser o “fenômeno” uma mera aparência. Pois o “fenômeno”
traduz o real para nós humanos, e nele pode conter tanto aquilo que se
traduzirá por verdadeiro como aquilo que se mostrará como mera aparência. Escreve o filósofo: “Quando digo que no
espaço, e no tempo, tanto a intuição dos objetos exteriores como a intuição que
o espírito tem de si próprio representam cada uma o seu objeto tal como ele
afeta os nossos sentidos, ou seja, como aparece, isto não significa que esses objetos sejam simples aparência”
(Crítica da Razão Pura, B, 69).
[vii] Os textos dentro dos
colchetes são comentários meus sobre o texto e não citações literais.
[viii] Os textos entre os colchetes são comentários
meus e não citações literais.
[ix] André Duarte, em
comentário à citada obra de Hannah Arendt, escreve que, embora a autora “não
afirme contextualmente, é perceptível que ela compreende o sensus comunnis
kantiano tanto como condição da comunicação intersubjetiva, quanto como
um sentido que se sente a si mesmo na ‘operação de reflexão’ que
constitui o juízo. Para Hanna Arendt, o sensus comunnis tanto nos
revelaria a destinação social e comunicativa dos homens como seria a expressão
do prazer sentido na relação harmônica das faculdades da imaginação e do
intelecto, que interagem na reflexão que constitui o ato de julgar” (ARENDT, 1992,
p.129).
[x] Segundo Kant, encontra-se
ligada à essência de nossa razão a necessidade de se pensar uma
causa-primeira, geradora de toda condicionalidade, porém, ela mesma
incondicionada; de pensar esta causa como foco gerador da absoluta totalidade
das séries causais, de pensar uma inteligência suprema (a Onisciência) como
causa absolutamente única do Universo; de pensar a comunidade das formas, tal
como um organismo, segundo leis teleológicas, de pensar a finalidade absoluta,
enfim, de pensar DEUS. Escreve
Kant: “O ideal do Ser Supremo, de acordo com estas considerações, não é mais
que um princípio regulador da razão e que consiste em considerar toda a
ligação no mundo como resultante de uma causa necessária e absolutamente
suficiente, para sobre ela fundar a regra de uma unidade sistemática e
necessária segundo leis gerais na explicação dessa ligação; não é, entretanto,
a afirmação de uma existência necessária em si” (Crítica da Razão Pura,
B, 647). Estas idéias regulam, entre outras coisas, o “fim último do
homem”, que é (deve-ser) o fim moral (CJ §42, §89).
Pois, se Mundo é uma Idéia que diz um Todo plenamente organizado e
possuidor de um fim (finalidade), o homem, como parte integrante deste
(hipotético) Todo, deve igualmente possuir um fim: “Temos razão suficientes
para ajuizar o homem, não simplesmente enquanto ser da natureza como todos os
seres organizados, mas também, aqui na terra, como o último fim da
natureza, em relação ao qual todas as restantes coisas naturais constituem um
sistema de fins, segundo princípios da razão. (....) Por outro lado é muito
errôneo pensar que a natureza o tomou como ser preferido em detrimento de todos
os outros animais” (CJ §83, grifo nosso). Se o homem não é o fim
último como ser natural, i.e., como ser sensível, nem finalidade última como
sujeito epistemológico, deve ser, no entanto, o fim último como ser
de razão (moral). “O ser humano somente como ser moral pode ser um fim
terminal da criação” (CJ §86). Este fim último (“fim
terminal”) funciona só como balizador (um regulador).
[xi] Tanto que, para Kant, a
insanidade, a “alienação mental”, se traduz pela perda do “senso comum”,
que nos capacita a julgar e a comunicar. Ver, p.ex.: Antropologia,
§53.
---------------
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah - Lições Sobre a Filosofia Política de Kant.
Tradução: André Duarte de Macedo (Lectures on Kant’s Political Philosophy,
The University of Chicago Press, Chicago, Illinois, U.S.A, 1982), Rio de Janeiro,
Relumé Dumará, 1992.
FERRY, Luc - Homo Aestheticus (A Invenção do Gosto na Era
Democrática). Tradução: Eliana Maria de Melo Souza (Homo Aestheticus -
L’Invention du Goût a L’Age Démocratique, Editions Grasset & Fasquelle,
Paris, 1990), São Paulo, Ensaio, 1994.
LEBRUN, Gerárd - Kant e o Fim da Metafísica. Tradução:
Carlos A. R. de Moura (Kant et la Fin de la Métaphysique, Armand Colin,
1970), São Paulo, Martins Fontes, 1993.
LYOTARD, Jean-François - Lições Sobre a Analítica do
Sublime. Tradução: Constança M. Cesar e Lucy R. Moreira Cesar (Leçons
sur l’analytique du Sublime, Editions Galilée, 1991), Campinas, São Paulo,
Papirus, 1993.
KANT, Immanuel – Anthropologie du point de vue pragmatique.
Tradução: Michel Foucault, Librairie Philosophique, Paris, J. VRIN, 1984.
---------------------- - Crítica da Razão Pura.-Tradução:
Manuel P. dos Santos e Alexandre F. Morujão (Kritik der reinen Vernunft),
Lisboa, Portugal, Fundação Caloustre Gulbenkian, (2ª. edição) 1989.
-------------------- - Crítica da Razão Prática.
Tradução: Artur Morão (Kritik der praktischen Vernunft), Lisboa, Portugal,
Edições 70, 1989.
----------------- - Crítica da Faculdade do Juízo. Tradução:
Valério Rohden e A. Marques (Critik der Urteilskraft, 2ª edição de
1793), Rio de Janeiro, Forense, 1993.
TÜRCKE, Cristoph - O Louco: Nietzsche e a Mania de Razão.
Tradução: Antônio C. P. de Lima (Der tolle Mensch - Nietzsche und der
Wahnsinn der Vernunft, Fischer Taschenbuch Verlag GmbH, Frankfurt, 1989), Rio
de Janeiro, Vozes, 1993.
Postado por Imaculada Conceição Manhães Marins